Beny Ribeiro dos Santos - Programa de Pós

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Beny Ribeiro dos Santos - Programa de Pós
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
BENY RIBEIRO DOS SANTOS
OS CONCEITOS DE FICÇÃO E VERDADE
EM PLATÃO, NIETZSCHE E BERNARDO CARVALHO
RIO DE JANEIRO
2006
1
BENY RIBEIRO DOS SANTOS
OS CONCEITOS DE FICÇÃO E VERDADE
EM PLATÃO, NIETZSCHE E BERNARDO CARVALHO
Tese apresentada à Coordenação dos Cursos de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em Ciência da
Literatura, na área de concentração Poética.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho.
UFRJ – Faculdade de Letras
Rio de Janeiro, 2º semestre de 2006
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BENY RIBEIRO DOS SANTOS
OS CONCEITOS DE FICÇÃO E VERDADE
EM PLATÃO, NIETZSCHE E BERNARDO CARVALHO
Tese apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura, na área de
concentração Poética.
Aprovada em ___ de __________ de 2006.
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________
Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientador
_______________________________________
Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________
Profª. Drª. Beatriz Vieira de Resende
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________
Prof. Dr. Karl Erik Schollhammer
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
_______________________________________
Profª. Drª. Angela Maria Dias
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________
Profª. Drª. Eliana Lucia Madureira Yunes
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
_______________________________________
Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
3
.
A Santinho Souza, Sandra Abrante, Jorge Solano,
Jacqueline Louzada, Raimundo Carvalho, Ester Abreu,
Paulo Sodré, Virgínia Albuquerque e Wilberth Claython,
o saber do que não se conhece.
4
Agradeço ao Conselho de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), que me
concedeu o suporte financeiro para a
realização desta pesquisa,
ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura, que me proporcionou uma
formação teórico-literária crítica e inquietante,
ao Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho, que
me orientou nesta pesquisa com auxílio
metodológico e observações críticas
fundamentais à sua realização.
5
A compreensão correta de uma coisa e a má
compreensão dessa mesma coisa não se
excluem completamente.
Franz Kafka
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RESUMO
A tese apresenta um estudo comparativo dos conceitos de ficção e verdade presentes nos
diálogos de Platão, nos aforismos de Nietzsche e nos romances de Bernardo Carvalho. A
presunção enganosa da verdade substancial que subordina a ficção mimética à reprodução
de um mundo previamente constituído é posta em questão através da crítica dirigida à
natureza objetiva da pesquisa da verdade imutável na dialética platônica. A domesticação
da ficção poética na teoria do conhecimento platônica é considerada sob uma variedade de
pontos de vista que esclarecem o substrato metafísico do discurso filosófico quando
desqualifica a precariedade da verdade múltipla e transitória. Se a teoria das idéias com
seus arquétipos de formação do cidadão e da cidade tornou-se possível no interior da
cultura que concedia um grande valor ao cosmo de ordem equilibrada, harmônica e
perfeita, não é menos verdadeiro que a mudança dos fundamentos que constituem os
paradigmas conceituais trouxe a efetiva possibilidade de se verem os conceitos de ficção e
verdade como formas da evolução de idéias mutantes e conflitivas. A crítica nietzscheana à
crença compulsiva na realidade do ser imutável, como também no critério de verdade da
razão objetiva, serve de base fundamental à problematização da auto-suficiência da verdade
que se considera imutável e uniforme. A suspeita que paira sobre a natureza de cada
realidade ser realmente o que parece ser na narrativa de Bernardo Carvalho revela que o
problema do fundamento da existência não é uma questão exclusiva de um campo
específico do conhecimento. O esforço por se conservar no interior da tensão constitutiva
da realidade faz com que a narrativa de Bernardo Carvalho recuse a evidência necessária do
ser bem formado e explore um domínio em que falta determinação essencial à natureza da
verdade para que se apresente como uma realidade completa. Platão, Nietzsche e Bernardo
Carvalho protagonizam nesta tese uma reflexão abrangente sobre a natureza do verdadeiro
e do ficcional como formas de conhecimento do mundo (in)determinado.
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ABSTRACT
This Doctoral dissertation is a comparative study of the concepts of truth and fiction as can
be found in Plato’s dialogues, Nietzsche’s aphorisms, and Bernardo Carvalho’s novels. The
deceitful assumption of a substantial truth that subordinates mimetic fiction to the
reproduction of a pre-constituted world is called into question by means of a critique turned
towards the objective nature of research on the notion of “immutable truth” in Plato’s
dialectics. The taming of poetic fiction in Plato’s theory of knowledge is focused on from a
variety of viewpoints that clarify the metaphysical substratum of philosophical discourse by
disqualifying the precariousness of a multiple and transitory truth. If it is true that the
theory of ideas with its archetypes of city establishment and citizen education was made
possible in a culture that praised a balanced, harmonic and perfectly ordered cosmos, it is
no less true that a change in the bases of what constitutes conceptual paradigms has brought
about the possibility of actually regarding the concepts of truth and fiction as
manifestations of the evolution of changeable and conflicting ideas. The Nietzschean
critique on the compulsive belief in the existence of immutable being, as well as in the truth
criterion of objective reason, is the very basis for questioning the self-sufficiency of the
truth which Plato regards as immutable and uniform. The suspicion about the fact that
every thing is what is seems to be in Bernardo Carvalho’s narrative reveals that the problem
of the nature of existence is not exclusive to a specific field of knowledge. Bernardo
Carvalho’s efforts for remaining within the limits of the constitutive tension of reality
makes his narrative turn its back towards the necessary evidence of the virtuous, welleducated being, and explore a domain in which the nature of truth lacks the essential
determination which enables it to present itself as a complete, consummate reality. Plato,
Nietzsche and Bernardo Carvalho are, in this dissertation, the protagonists of a
comprehensive analysis of the nature of truth and fiction as a way of getting acquainted
with the (un)determined world.
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RÉSUMÉ
Il est question dans cette thèse d’une étude comparative des concepts de fiction et de vérité
présents dans les dialogues de Platon, dans les aphorismes de Nietzsche et dans les romans
de Bernardo Carvalho. La présomption trompeuse de la vérité substantielle qui soumet la
fiction mimétique à la reproduction d’un monde préalablement constitué est mise en
question à travers la critique adressée à la nature objective de la recherche de la vérité
immuable dans la dialectique platonicienne. L’assujettissement de la fiction poétique dans
la théorie platonicienne de la connaissance est considérée sous une variété de points de vue
qui éclairent le substrat métaphysique du discours philosophique quand il disqualifie la
précarieté de la vérité multiple et transitoire. Si la théorie des idées avec ses archétypes de
formation du citoyen et de la cité est devenue possible à l’intérieur de la culture qui
concedait une grande valeur au cosmos d’ordre équilibré, harmonieux et parfait, il n’est
pas moins vrai que le changement des fondements qui constituent les paradigmes
conceptuels a apporté la réelle possibilité de voir les concepts en tant que formes de
l’évolution d’idées changeantes et conflictuelles. La critique nietzschéenne à la croyance
compulsive dans la réalité de l’être immuable, de même que le critère de vérité de la raison
objective, tient lieu de fondement à la mise en discussion de l’autosuffisance de la vérité
qui se considère immuable et uniforme. La méfiance qui plane sur la nature de chaque
réalité d’être réellement ce qu’elle paraît être dans le récit de Bernardo Carvalho révèle que
le problème du fondement de l’existence n’est pas une question exclusive d’un domaine
spécifique de la connaissance. L’effort de se conserver dans l’intérieur de la tension
constitutive de la réalité fait que le récit de Bernardo Carvalho refuse l’évidence nécessaire
de l’être bien formé et exploite un domaine où manque une détermination essentielle à la
nature de la vérité pour qu’elle se présente comme une réalité complète. Platon, Nietzsche
et Bernardo Carvalho sont, dans cette thèse, les protagonistes d’une ample réflexion sur la
nature du vrai et du fictionnel comme formes de connaissance du monde (in)déterminé.
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SUMÁRIO
I INTRODUÇÃO ......................................................................................................
10
II A ÁRVORE DO SABER ......................................................................................
15
III A ACADEMIA DOS RUMINANTES ................................................................
25
IV OS DISFARCES DA MIMESE ..........................................................................
60
4.1 PLATÃO CONTRA HOMERO ............................................................................
60
4.2 SONHO E PESADELO DE PLATÃO .................................................................
90
4.3 A ÓTICA DO FALSO EM NIETZSCHE ............................................................. 117
V
O SONHO DO SONHADOR .............................................................................. 140
5.1 A CONFABULAÇÃO DAS PALAVRAS ...........................................................
140
5.2 OS DESVIOS DA IMAGINAÇÃO ......................................................................
159
5.3 O GRANDE TEATRO DO MUNDO ...................................................................
176
VI O QUE NÃO SE CONHECE ..............................................................................
193
VII REFERÊNCIAS .................................................................................................. 209
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I
INTRODUÇÃO
A investigação dos conceitos de ficção e verdade tem origem na nascente filosofia
grega. Quando a filosofia dava seus primeiros passos em direção à definição da verdade
objetiva, a rivalidade entre domínios do conhecimento era estimulada por filósofos como
Platão, que questionava a legitimidade da mimese através da desqualificação de
personagens relacionados com a poesia, como o poeta e o rapsodo, o pintor e o sofista.
Pode-se mesmo associar a natureza da filosofia em sua versão racionalista à constituição de
seu objeto, definido como uma verdade de aspiração universal que não se mistura com os
acontecimentos transitórios que tentam usurpar o domínio exclusivo da realidade imutável.
A investigação dos conceitos de ficção e verdade permanece como questão do pensamento,
sendo objeto de diversos sistemas de sentido, como a religião e a ciência, a literatura e a
filosofia, na medida em que esses sistemas constituem domínios restritos do conhecimento.
É natural que cada sistema de sentido privilegie a definição que mais lhe convenha, sinal de
que as definições estão subordinadas às perspectivas de avaliação, como mostra Nietzsche
na crítica da vontade de verdade com sua ambição metafísica de atingir a realidade
essencial das coisas, crítica que revelou os vínculos entre a dominação metafísica e a
interpretação moral do processo civilizatório. Caso fosse possível fazer um levantamento
exaustivo das considerações sobre os conceitos de ficção e verdade que já alcançaram
alguma ressonância na constituição do pensamento, a investigação se desdobraria em
múltiplas bifurcações que fragmentariam a reflexão. Certamente nem o tempo de uma vida
inteira sem sobressalto seria suficiente para realizar o projeto, por isso o desenvolvimento
desta pesquisa persegue uma meta bem menos ambiciosa. Os conceitos de ficção e verdade
retornam com freqüência à matéria diversificada do conhecimento. Assim acontece na
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narrativa de Miguel de Cervantes, de Gustave Flaubert, de Jorge Luis Borges, na poesia de
Fernando Pessoa, de Mário de Sá-Carneiro, de José Régio, na filosofia de Platão, de
Aristóteles, de Nietzsche. As obras do conhecimento são tão numerosas quanto a própria
vontade de saber, desdobrável e múltipla como a existência. Ante um horizonte de tantas
grandezas, definir um ponto de partida se torna um problema espinhoso. Quando as
grandezas dificultam a escolha de um caminho, logo o risco de se extraviar se torna uma
realidade inelutável. Torna-se então necessário demarcar um domínio particular no amplo
território das obras para que o problema tome a forma de uma questão determinada.
Platão acredita que a verdade é o que permanece sempre da mesma forma na
realidade. Como a verdade não pode estar em qualquer substância que sofra a ação do
tempo, a ficção deve submeter-se à reprodução do que permanece sempre igual a si mesmo,
caso queira alcançar a aprovação de quem dirige o tribunal e decide a sorte da realidade
objetiva. Nietzsche confere à crítica do critério de verdade que apenas reconhece o
princípio de conservação na definição da existência a tarefa de reformar as apreciações de
valor. Se a vida é determinada por uma vontade de criação que muda freqüentemente o
modo de ser das coisas, o conceito de verdade deve ser receptivo à realidade cambiante
plasmada pelo espírito criador, cuja força de criação possibilita às ficções caminharem cada
vez mais longe das convenções estabelecidas para que haja ampliação do horizonte da
consciência. Bernardo Carvalho também reconhece as aporias do esforço de esclarecimento
ante a contraposição de um princípio de indeterminação na constituição da existência, que
tem seu domínio redimensionado sempre que a incerteza intervém na formação dos
acontecimentos. Como a verdade em que se acredita pode ser ainda mais irreal que a ficção
mais fantasiosa, Bernardo Carvalho estimula a desconfiança generalizada em relação à sua
determinação. Os conceitos de ficção e verdade são percebidos sob o círculo de influência
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dos encontros e desencontros imprevisíveis dos acontecimentos, de forma que a narrativa
desperta os sentidos para as aporias do processo de constituição da existência,
demonstrando com isso a possibilidade de superação das determinações da verdade através
das indeterminações da ficção. Platão e Nietzsche fundamentam visões de mundo em
realidades muito diversas, o que favorece a confrontação de suas teses sobre os conceitos
de ficção e verdade com o objetivo de desenvolver os impasses decorrentes de perspectivas
contraditórias. A aproximação de diferentes esquemas de apropriação procura identificar a
amplitude do problema definido como objeto de investigação. O encontro de esquemas
conceituais diversos com procedimentos específicos da narrativa de Bernardo Carvalho
delimita as diretrizes gerais da investigação, determinando a direção de uma metodologia
de análise da literatura enquanto forma de conhecimento que resiste ao condicionamento
das idéias. A escolha da obra ficcional de Bernardo Carvalho se tornou possível na medida
em que a reflexão contemporânea sobre a ficção e a verdade adquiriu o status de uma
questão determinante para a existência da literatura no domínio do conhecimento. Assim
uma confluência de forças foi assinalada no amplo horizonte vislumbrado de início,
estabelecendo uma relação entre o passado e o presente mais recente.
Identificar os pontos controversos dos conceitos de ficção e verdade em Platão,
Nietzsche e Bernardo Carvalho põe em destaque certas direções que a reflexão precisou
seguir. Determinar a natureza de cada domínio do conhecimento, como se fosse possível
executar a tarefa de uma forma definitiva, deixa em estado de alerta o estatuto da
investigação, porque o domínio de uma pesquisa deve ser avaliado não só em função de
suas premissas originais, como também tomando-se nota das perspectivas que conduzem a
reflexão. Os conceitos de ficção e verdade, na medida em que alimentam dissensões a
respeito de sua natureza essencial, são tratados como uma questão emblemática do
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conhecimento, um problema que pressupõe variáveis de tonalidades diferentes. Do ponto
de vista etimológico, um problema é alguma coisa que se interpõe diante de alguém,
introduzindo uma barreira em seu caminho (problemata), uma dificuldade difícil de
resolver (aporiai), um enigma que ameaça a capacidade de compreensão fundada na
experiência estabelecida, como revela Carlos Drummond de Andrade, “O enigma tende a
paralisar o mundo” (1980, p. 162). Para resolver um problema, é preciso reconhecer a
extensão de sua barreira, esboçar um plano de transposição, executar cada etapa do projeto
de conquista com o ímpeto das grandes ações. Para delimitar o horizonte do problema, a
palavra “conceito” é utilizada como meio restritivo dos termos “ficção” e “verdade”, sinal
de que existe um limite em sua abordagem, embora o esforço de contenção que caracteriza
o conceito pareça sempre precário quando confrontado com as dificuldades de um
problema que desafiam o pensamento racional. A utilização da palavra “conceito” no plural
gera dificuldades para o desejo de definição definitiva de certas variáveis do conhecimento.
O domínio do conceito não abrange a contenção definitiva da verdade imutável; define-se
antes como uma perspectiva determinada sobre uma unidade difícil de resolver. Todo
conceito é uma interpretação determinada, uma acomodação de diferentes elementos e
aspectos da realidade das coisas.
A experiência oscilante que desenha uma trajetória histórica entregue à exposição
do desconhecido envolve a vontade de saber entre a descontinuidade de seus artefatos. O
empenho por resolver o problema da ficção e da verdade impulsiona a vontade de saber na
exploração de princípios contraditórios da natureza. A história humana enquanto busca sem
precedentes poderia ser contada a partir do esforço de determinação do conhecimento
acerca do mundo. Os conceitos da filosofia, as invenções da ciência, as poéticas da
literatura compõem um vasto domínio de saber a ser explorado. A mesma vontade de saber
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que procura determinar a forma definitiva da verdade desperta a dúvida generalizada no
interior dos sistemas de sentido que querem governar a vida em si mesma, mas não
suportam a incerteza que se abate sobre o homem nas situações extremas. Quando a
vontade de saber faz com que o pensamento ultrapasse os limites do conhecimento
estabelecido, onde ainda estão para serem inventadas novas coordenadas de referência, a
natureza oscilante das experiências indeterminadas readquire seu espaço de direito. Não
reconhecer que a vida é uma contínua luta contra a ausência de si mesmo corresponde a
desconsiderar a indeterminação de realidades que vêm ao mundo incompletas e assim
permanecem até o esgotamento da vontade de definição. Quem se acorrenta em
pressupostos imutáveis se nega a reconhecer o valor da redefinição das convicções naturais.
Quem se libera dos grilhões da verdade dogmática se permite participar da ordem dos
acontecimentos que esperam conquistar um espaço na realidade. Uma e outra escolha não
escondem os riscos fundamentais das alternativas extremas. Pretender eliminar as
perspectivas divergentes da definição dos fenômenos, seja na escolha conceitual, seja na
conciliação teórica, constitui mais um fio de uma extensa teia de conflitos. A investigação
dos conceitos de ficção e verdade é uma forma de se ter acesso à realidade das definições
que se apropriam em cadeia do mundo que se encontra à sua volta. As perguntas O que é a
ficção? e O que é a verdade? configuram um quadro referencial de investigação dos
diálogos de Platão, dos aforismos de Nietzsche e dos romances de Bernardo Carvalho. O
contraste entre valores filosóficos e valores estéticos é uma articulação de idéias
engendrada com o objetivo de superar a oposição metafísica de valores.
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II A ÁRVORE DO SABER
Tudo começou com uma certa pergunta que desencadeou um processo especulativo
ascendente em que a incerteza se tornou a companhia mais freqüente. Qualquer que tenha
sido a fonte controversa a lançar a primeira pergunta, houve um dia em que a dúvida se
introduziu no domínio da consciência. O movimento uma vez iniciado nunca mais parou. A
percepção da realidade absorveu o impacto da especulação reduplicada ao infinito. A
pergunta inaugural iniciou o momento sublime de nascimento do movimento oscilatório. O
acontecimento é tão incompreensível em sua totalidade que elide avaliações intransitivas.
Talvez seja uma simples pergunta que há milênios esperava ser solenemente pronunciada.
Por tratar-se de um caso de desconfiança diante de, não se esqueceram de sua vontade de
ser finalmente despertada. Pouco importa reconhecer a linguagem antiga em que a pergunta
inaugural foi enunciada. Se reconhecemos no seu lento mover-se o próprio formar-se e
transformar-se dos seres, assim como reconhecemos incertamente um lugar em que
estivemos pelo menos uma vez, não será necessário traduzi-lo em definições definitivas que
apenas comprometem cada manifestação da vontade de saber. A dúvida que aflorou na
especulação em cadeia se tornou parte integrante da vida. Há diligência em buscar as
respostas para situá-las no lugar adequado. Espera-se atingir o núcleo da natureza humana,
a origem da formação do universo, o fundamento de cada ser existente. Bastaria determinar
os pontos controversos do problema em questão, como se a identificação não assinalasse
mais que uma certa direção na realidade sempre diferente de si mesma. A instabilidade se
anuncia sempre que se começa a hesitar ante a pluralidade de respostas encontradas, ou
mesmo ante o silêncio abismal que desconversa em código impossível. O conhecimento
permanece vinculado a um pensamento que opera sempre por defasagens. A consciência
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crítica de repente descobre que elementos desconhecidos percorrem o fluxo do próprio
sentido. Quando a razão objetiva é posta sob suspeita, a verdade se desvia da definição, o
saber se enreda em contradições, a ficção se encontra numa sala de espelhos. A falta de
determinação às próprias respostas faz com que a dúvida participe das decisões. As
diferentes inter-relações que ocorrem nesses deslocamentos desenham uma curva sinuosa.
A pergunta inaugural inicia sua movimentação incessante no momento em que a
vontade de saber o sentido íntimo das coisas não pode mais ser simplesmente ignorada. Se
não é possível determinar tudo o que um ponto de interrogação reflete de uma vez por
todas, pretender estabelecer-se em algum lugar para sempre parece ser um sonho absurdo.
A dúvida especulativa configura modos de ser tributários de um mundo em constante
disputa com as finalidades coercitivas da natureza. O devir excede a conservação
permanente da ordem como forma superior de existência. A emergência de realidades é
permanente no sistema cuja estrutura é regulada pela indeterminação dos acontecimentos
imprevisíveis. Há uma movimentação incessante do desconhecido no interior do
acontecimento que não o deixa estabilizar-se numa forma definitiva. Há sucessivos
deslocamentos nas relações efetuadas entre a vontade de saber e o devir que se esquiva da
determinação. A dialética da pergunta compõe a história da dúvida que desafia a vontade de
saber. Toda ela pode ser entrevista na oscilação permanente dos acontecimentos que fluem
e refluem em direções diferentes e divergentes. Mas quando começou todo esse processo?
Novamente a ânsia pela gênese assalta sem aviso prévio. Pode ter começado num tempo
muito distante. Talvez quando a primeira manifestação do imaginário possibilitou a
oposição primordial entre o sentido e a falta de sentido, ou entre o sentido conhecido e o
sentido desconhecido.
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A pergunta primordial revela sua potência subversiva nas primeiras narrativas do
Gênese. O livro das origens representa a inquietação humana ante a possibilidade de ter o
controle sobre o conhecimento totalizante. Logo que o homem foi criado à imagem e
semelhança de Deus, o pai consciencioso não perdeu tempo em estabelecer separações,
restringindo o domínio do ímpeto especulativo que movimenta a vontade de saber.
Qualquer que tenha sido a ordem instaurada no gesto fundador, a interdição divina implica
a divisão entre os elementos de um conjunto, o assinalamento das ações regulamentadas de
um sistema. Tal fenômeno pode ser observado após a criação do primeiro exemplar
humano. O casal primordial é autorizado a comer do fruto de toda árvore do jardim do
Éden, exceto do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. O gesto evidencia de
saída uma espécie de ressentimento originário ante o conhecimento da natureza. Se, por um
lado, o interdito é feito para conter o domínio do conhecimento, o que executa o imperativo
de contenção necessário à conservação da ordem privilegiada; por outro lado, a limitação
da liberdade incita ainda mais a vontade de saber. A serpente que aparece na segunda
história da criação representa o desejo arrebatador que encaminha a vontade para a árvore
do saber. A intervenção desagregadora da serpente, que recebe o atributo de animal mais
astuto entre todas as feras, transporta a glória e a danação humanas. O domínio do saber
absoluto, que é também poder ilimitado, elimina as diferenças naturais entre deuses e
homens. A demanda do saber nasce, portanto, associada à transgressão da ordem divina e
ao projeto de emancipação da espécie humana de seu domínio. O mito reserva à Eva,
princípio de diferenciação entre os seres, o interesse de conter em si todo o saber possível.
Ela não somente experimenta o fruto da árvore do conhecimento, como também convence
Adão a fazer o mesmo.
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Não é de pouca importância que o interesse pela árvore do saber aposte na
ampliação do campo da percepção sensível. Aquele que se alimentar de seu fruto se tornará
conhecedor do bem e do mal à proporção que seus olhos percorram um horizonte mais
abrangente. A abertura dos olhos equivale à ampliação da inteligência. O mito privilegia o
sentido da visão como forma de acesso ao saber totalizante, lembrando que o sentido da
visão é determinante na constituição do conhecimento. A idéia de que o conhecimento é
uma delícia para os olhos pode ser cotejada com a representação da visão no imaginário
grego. Poder ver a realidade eterna, sem forma, sem cor, impalpável, equivale a poder
contemplar a própria verdade em sua essência fundamental. Para Platão a contemplação das
idéias exige que o espírito se afaste do mundo visível. Ver racionalmente é, portanto, bem
diverso de ver sensivelmente. A visão do intelecto possibilita o mergulho na ciência pura. A
segunda história da criação mostra que o acesso ao conhecimento verdadeiro por meio da
visão clara e distinta das coisas está associado à conquista da onisciência divina:
E viu a mulher
que era boa a árvore para comer
e uma delícia para os olhos
e aprazível a árvore que dá conhecimento
e tomou de seu fruto e o comeu
E deu também ao homem junto a ela
e ele comeu
E se abriram os olhos aos dois
e souberam que estavam desnudos
eles
E trançaram folhas de figueira
e fizeram para si mesmos cintos
(Campos, Gn, 3, 6-7, 2004, p. 55-56)
O saber é uma fonte de alimento, a sobrevivência da espécie depende do
conhecimento, mas o fruto do conhecimento é uma substância de conformação
ambivalente. A consciência do saber contraditório expulsou o homem da naturalidade
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integrada em que se encontrava para a instabilidade ambivalente de um mundo sem
fundamento determinado. O homem é despertado pela consciência opositiva que o
transporta do estado natural de harmonia com a natureza paradisíaca para o estado
inquietante do artefato que desarticula a ordem edênica da idade de ouro. Só o vislumbre
dos antagonismos que habitam as contradições do conhecimento desperta a desconfiança
diante da dúvida especulativa. A ingestão do fruto inviabiliza a promessa do saber como
território ocupado por verdades substanciais. Paralelamente à entrada nessa terra hostil,
processa-se a formação da moral entre deuses e homens. A lógica da contradição que retém
o exílio para si mesma promove a formação de imagens negativas da cultura, como se a
confrontação dos antagonismos em seu interior contrariasse toda forma de virtude. O
desdém por aquilo que sofre a ação do tempo reflete o desejo de restauração da unidade
original, perdida na repartição do conhecimento entre fragmentos dispersos e descontínuos.
A expulsão do paraíso terrestre não esconde o que movimenta a desobediência
original. O casal primevo não resiste às promessas da serpente, que introduz a consciência
da natureza dos opostos, entrevista na ruptura do limite da identidade edênica. A demanda
que o mais hábil dos animais desperta pelo saber torna a vontade cativa. A crença de que o
amanhã pode ser melhor que o hoje, desde que se domine a natureza essencial das coisas,
movimenta o projeto de emancipação. A segunda história da criação é a narrativa dos
impasses nascidos do desejo humano de se tornar auto-suficiente pelo controle do saber.
Não há ordem uniforme que resista por muito tempo diante da confrontação com as
exigências de um conhecimento de constituição tão contraditória. A condenação do gesto
emancipatório procura evitar outras quedas ainda mais aniquiladoras, já que a falta de
unidade aumenta o risco de destruição da espécie. A interdição reconhece na natureza do
conhecimento alguns componentes indissociáveis do mal. A ampliação do saber se inicia,
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portanto, com o conhecimento traumático de sentidos inconciliáveis, como a temível
separação entre a vida e a morte, entre o espírito e o corpo, entre a verdade e a mentira. A
ingestão do fruto da árvore do saber inaugura um conhecimento primordial em que a
verdade muda de estado toda vez que a dúvida avança em direção à certeza. Em resposta à
subversão da lei que ordenava o cosmo privilegiado, Deus se afastou de sua criação,
levando consigo a ordem idealizada, restando ao homem apenas percorrer as rotas do devir
que nunca se sabe. O homem deixou o tempo arquetípico sempre igual a si mesmo para
conhecer o tempo histórico cada vez diferente de si mesmo. Deus não deixou de desaprovar
com veemência a ação subversiva, ainda que tivesse escapado do domínio da vontade
consciente. A ruptura efetiva com a idade de ouro proporcionou uma imediata inserção nas
ruínas da ordem demolida. O engenhoso desejo de saber ficou entregue a si mesmo,
movendo-se nos interstícios do próprio movimento que o constituiu inicialmente, sempre
um e outro, como as nuvens que passam sem distinguir sua forma natural.
Porém é preciso revalorizar o desejo potencialmente interessado na redistribuição
dos seres. A associação da vontade de saber às artimanhas da serpente – o ser diabólico por
excelência, diabolon é o que divide, o que separa, o que modifica – busca, ao contrário,
reter o fluxo do conhecimento indeterminado. Há tempos o homem (se) faz perguntas na
tentativa de se reencontrar com a unidade perdida, se é que algum dia tenha conhecido
efetivamente tal modalidade de existência. Da divisão do ser em dois à crença no mundo
das essências absolutas, da crença nas verdades eternas à condenação de toda ordem que
coloque em risco sua existência, o homem hesita entre um e outro pólo. Ante a inevitável
oscilação do conhecimento, como reunir o que se apresenta sempre de forma tão
heterogênea, como reconciliar a exigência da verdade com a irracionalidade da existência,
como se relacionar com as idéias fabulosas que convivem no pensamento?
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O homem é expulso do paraíso, porque aspirava a ser igual a Deus. Deus o pune
para que conheça os riscos da vontade quando atua sem conhecer os limites da liberdade. O
mito não disfarça o temor divino ante a possibilidade de ser igualado pelo homem na
apreensão do conhecimento e na experiência de viver eternamente. Saber e eternidade
absolutos são signos da distinção do poder ilimitado. Da mesma forma que o domínio do
conhecimento delimita uma hierarquia entre o Deus hebraico e o casal primordial, o
controle sobre o fogo distingue os deuses dos homens no mito de Prometeu. Prometeu
acorrentado, de Ésquilo, se inicia com a prisão do titã no alto de um rochedo escarpado,
onde em breve uma águia virá devorar seu fígado periodicamente, que voltará a crescer
após cada noite de repasto. Zeus, que conserva na tragédia os traços da antiga divindade
soberana, arbitrária e absoluta, ordenou sua prisão, porque havia roubado o fogo sagrado e
o entregado aos homens. Prometeu se rebelou contra o poder político de Zeus, porque o
monarca, após a guerra entre olímpicos e titãs, quando ocorreu a repartição das honras a
cada um dos deuses em Mecona, não reservou nenhuma honraria para os homens, em cuja
espécie não tinha mais interesse. O sentimento humanitário de Prometeu se tornou uma
vítima da cólera divina, que não admite a transgressão de sua vontade, aniquilando quem se
opõe à sua força e a seu poder. Outra versão do mito diz que Prometeu criou o homem de
um bloco de argila misturado com água, tal como fez o Deus hebraico modelando o homem
da terra-húmus. Para protegê-lo de um futuro de fadigas e ilusões, concedeu-lhe, além do
domínio do fogo, a cega esperança, para que não pensasse na morte antes do tempo.
Condenado ao suplício eterno nos momentos finais da tragédia, Prometeu permanece
disposto a se opor à vontade de Zeus. Não há um fim para seu mal, a não ser que Zeus seja
derrubado de seu trono. Segundo Prometeu, “o prudente, previdente”, Zeus será vítima da
mesma artimanha que interrompeu o reinado de Crono, seu pai, e Urano, seu avô. Caso
22
Zeus libertasse Prometeu, o titã evitaria sua queda com a antecipação do casamento que
poria em risco seu governo.
A tragédia de Ésquilo narra a condenação de Prometeu e o desafio do filho de
Jápeto à arbitrariedade inflexível que não se dispõe a prestar contas a ninguém. O fogo
concedido à humanidade é a ponte de passagem da infância para a maturidade, da
inconsciência para a consciência, da imprevisibilidade para a previsibilidade. Se antes os
homens olhavam sem ver, escutavam sem ouvir, viviam como ágeis formigas no fundo de
covas obscuras, quando recebem os dons de Prometeu, passam a conhecer a natureza das
coisas, a ciência dos números, o registro escrito da memória (Ésquilo, 2001, p. 46-47).
Prometeu é um adivinho que sabe o que está por acontecer no tempo que se desdobra. O
atributo da previdência é transmitido ao homem através do domínio do fogo, origem de
todas as artes técnicas que encerram um conjunto de procedimentos objetivos destinados à
realização de uma tarefa. Com o fogo o homem fundiu os metais, as armas, as defesas
contra as forças cegas da natureza. O fogo tirou o homem da escuridão, equacionou o medo
dos deuses imortais, devolveu-lhe a coragem de buscar a perfeição. Mas o fogo foi também
a origem dos males com que os deuses se vingaram dos homens quando criaram Pandora,
“a que tudo dá, a que tudo tira”, a outra face das artes de Prometeu, Epimeteu, “o que
compreende tardiamente”. Prometeu é o arquétipo do homem que luta contra o poder
tirânico dos deuses para se livrar da natureza inflexível que ameaça sua sobrevivência.
Depois de criar o homem ou de libertá-lo da inconsciência, Prometeu lhe deu razão e
conhecimento para que pudesse resolver os problemas e as contradições com que convive
esquecido dos deuses entre os infortúnios do acaso que não é regulado por nenhuma lei.
“Em uma palavra: os mortais têm todas as artes graças a Prometeu” (Ésquilo, 2001, p. 50).
As artes do fogo, inventadas com uma finalidade específica enquanto artifícios da
23
inteligência, se opõem aos processos naturais que se realizam ao sabor do acaso. Prometeu
concedeu a cada homem uma capacidade diferente para que pudesse fabricar os artifícios
mais variados. Graças à liberdade de que dispõe para inventar, o homem pôde sonhar com
um futuro mais além dos limites que controlam o fluxo da experiência nos domínios
predeterminados. O saber técnico delimitou a formação progressiva de um conhecimento
cada vez mais especializado e sistematizado. O domínio recorrente da natureza para adaptála às finalidades humanas ficou assim à mercê do progresso técnico. O fogo adquire
significados diferentes na representação dos mitos. Se, em Hesíodo, o fogo tem um sentido
alimentar; em Ésquilo, o fogo está relacionado com o processo civilizatório (Vernant, 1990,
p. 250).
A mitologia grega conserva outras narrativas que expressam a cólera divina contra o
ímpeto humano de se libertar do controle dos deuses. O rei Sísifo foi condenado a empurrar
uma enorme pedra até o cume de uma montanha no Hades sem que pudesse concluir o
trabalho. Uma versão do mito afirma que o crime de Sísifo foi instruir os homens nos
mistérios divinos. Já o rei Tântalo foi acusado de ter roubado a ambrosia e o néctar dos
deuses para oferecer ao seu povo as essências imortais. Quis igualar-se aos deuses na visão
clara e ampla que comanda o poder de controle, porém acabou condenado a viver
eternamente sob a ameaça de ser esmagado por um rochedo ou de ser consumido pela sede
e pela fome. A Serpente e Prometeu, como Sísifo e Tântalo, cometeram o crime de pensar,
encontraram na inteligência os artifícios necessários para ultrapassar os limites
determinados, assim puderam contrapor-se a todos os males legados por Pandora. O
conhecimento do artifício, caracterizado por sua astúcia multissábia, transgride as
imposições do poder político. Os deuses não gostam dos homens que pensam, não perdoam
os homens que conhecem, não acolhem os homens que inventam. Eles temem os artefatos
24
da invenção, metis previdente e ardilosa, que eliminam o medo do meio dos homens. A
revolta contra as interdições dos deuses demonstra que o homem é capaz de interferir
diretamente nos sistemas de sentido que regulam a liberdade de ação e pensamento. A
difusão do saber tem os meios para redimensionar os fundamentos do poder. Gaston
Bachelard reconhece nesses personagens um “complexo de Prometeu” caracterizado por
todas as tendências que os impelem a saber tanto quanto seus pais ou até mesmo mais do
que eles (1999, p. 18).
Há uma sede por saber em todo coletivo humano, um desejo insaciável de conduzir
as coisas para fora de si mesmas. Quando se deixa conduzir por esse desejo, a vontade
conhece as contradições mais inconciliáveis sem anular seus antagonismos fundamentais.
Se não se permitisse a experiência do sentido indeterminado, abster-se-ia de participar da
história vertiginosa inaugurada com a dúvida primordial, que se envolve com o mundo raro,
estranho e desconhecido que observa de todos os lados. O desejo de saber descreve uma
curva sinuosa, uma viagem realmente imensa em que cada hora se tem menos certeza. O
desejo de saber movimenta a vontade de saber na dúvida especulativa que promove as
separações. A dúvida hesita entre as oscilações de sentido sem saber por onde seguir. De
nada adianta tentar conter as demandas desse movimento incessante. A vontade de saber
constitui um campo de força do qual não se pode escapar ileso. Mesmo sem se saber por
quê, irrompem multiplicantes pontos de interrogação. Outrora viagens ao novo mundo, hoje
odisséias no espaço. Entre a vontade de saber e o que se pode conhecer no período de uma
vida, há uma série de acontecimentos que ainda esperam ser compreendidos.
25
III A ACADEMIA DOS RUMINANTES
Nietzsche reconhece a íntima dependência que se desenvolve entre a vontade de
saber, a vontade de poder e a vontade de verdade em Além do bem e do mal. A hipótese de
que em toda parte onde se reconhece vida existe uma vontade atuante, de que em toda vida
instintiva existe elaboração e ramificação de uma forma básica de vontade – a vontade de
poder, força arrebatadora que intervém em processos que divergem entre si, mostra que
todo grande empenho do desejo luta por potência, riqueza, exuberância (2002, p. 43, § 36).
Um mundo de desejos e paixões regularia os esquemas da razão objetiva, as criações do
pensamento consciente, as manifestações do conhecimento reflexivo. Por mais que o
interesse mais elevado busque uma meta superior, o mundo não é governado pela razão
pura, nem a consciência lógica produz conhecimento livre da vontade. A maior parte do
pensamento consciente, como a aparente soberania da lógica racional, devem, portanto, ser
incluídas entre as atividades afetivas, como paixões, vontades e instintos. O
reconhecimento da participação de afetos na realidade existencial tem por objetivo formular
a crítica da razão objetiva como princípio determinante da verdade universal. O mundo é
gerado a partir do confronto de paixões que se superam continuamente. "Por fim, escreve
Nietzsche, amamos o próprio desejo, e não o desejado" (2002, p. 83, § 175). O pathos é a
força motriz da realidade natural, e a vida é precisamente um afeto imoderado, um afeto
bom ou mau, um desejo de ser o outro de uma natureza inconformada. Se a moral, por um
lado, tem por função dominante estabelecer normas de conduta contra o livre trânsito das
paixões com suas inclinações inconstantes e até mesmo contraditórias; por outro lado, a
vontade de poder confere ao mundo em todas as suas formas conhecidas uma potência de
agir e de sofrer que acumula ou desacumula forças reativas em seu domínio. A grandeza da
26
força acumulada durante séculos, medida do valor de uma época insurgente, age como um
princípio de organização da vida. O mundo, quase invisível e inaudível, quase bom e
verdadeiro, quase determinado e completo, é definido por Nietzsche como uma
monstruosidade de forças, capazes de decisões largas e mudanças repentinas. As paixões
em excesso possuem um caráter multiforme, realmente diversificado, errante de desejos e
virtudes determinadas, sempre passível de auto-superação na lógica do tempo. O excesso é
precisamente o que transborda, porque não cabe em medidas convencionais. A vontade de
poder de conformação passional é uma potência de superação, uma força imensa que adeja
mundos futuros, que deseja o que não possui, o que é estranho, o que é sempre negado. O
instinto, impulso de conquista do que não pode esquivar-se, parte rumo ao desconhecido,
sem se esquecer da razão que o ajuda a justificar sua ação com bons ou maus motivos.1
O instinto circunscreve uma espécie de vontade inconsciente no pensamento de
Nietzsche. A valorização do instinto inconsciente tem por corolário a desvalorização dos
sistemas racionais dominantes na tradição filosófica ocidental. Assim, o instinto
inconsciente aparece como a espontaneidade entusiasmada com a possibilidade de ação e
reação, que possuem uma superabundância de força plástica, simultaneamente informe e
formativa. O instinto inconsciente não conhece limites, nem físicos, nem metafísicos, seu
corpo bem constituído corre obstinado como uma fera que se lança ao encalço da presa no
campo. Certas escolhas do imaginário cultural configuram nesse quadro algumas
1
Nietzsche sempre retorna à hipótese originária de que o mundo em sua multiplicidade concorrente é
constituído na realidade por afetos que se transformam ininterruptamente em um "jogo de forças e ondas de
força ao mesmo tempo um e múltiplo, aqui acumulando-se e ao mesmo tempo ali minguando, um mar de
forças tempestuando e ondulando em si próprias, eternamente mudando, eternamente recorrentes, com
descomunais anos de retorno, [...] abençoando a si próprio como Aquilo que eternamente tem de retornar,
como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço –: esse meu mundo
dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, do eternamente-destruir-a-si-próprio, esse mundo secreto da
dupla volúpia, esse meu para além de bem e mal [...]. – Esse mundo é a vontade de potência – e nada além
disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência – e nada além disso!" (1983, p. 397).
27
tendências que restringem o horizonte da vontade, na medida em que buscam
insistentemente domesticar o instinto inconformado para transformá-lo em "um animal de
rebanho", preso nas malhas da moral que se dirige a todos sem nenhuma reserva. O
processo civilizatório, gerado no seio da cultura com suas determinações impositivas,
autoriza o controle sobre os instintos fundamentais que se arremetem uns contra os outros,
o que confere à razão objetiva um poder ilimitado no controle das ações regulamentadas.
Educar e disciplinar, ordenar e moralizar, se correspondem de forma direta no interior do
processo civilizatório, cujo progresso natural é também manifestação da vontade de poder,
a mesma vontade que se quer conter a todo custo na domesticação do homem pelo homem.
A valorização do instinto em seu aspecto positivo torna possível a crítica da moral antitética
que determina a distribuição da cultura em fórmulas petrificadas da tradição. À maneira da
vida orgânica, selvagem, espontânea, imprevisível, o instinto é uma força de renovação,
inconsciente, irregular, aventureira como o pathos desmedido, explosivo, contraditório. O
instinto autônomo é um desejo excessivo que preside a geração e a morte dos seres.
Contudo, tanto a formação do Estado com a criação das leis, quanto a constituição da Moral
com a definição dos valores, suprimiram em grande parte a liberdade da vontade, limitando
assim sua intervenção na tradição. A liberdade é medida em função da resistência que
precisa ser superada para se garantir a existência da singularidade. Nietzsche define a
liberdade em Crepúsculo dos ídolos como “algo que se tem e não se tem, que se quer, que
se conquista...” no cerco da tirania do cárcere (2000, p. 96). A crítica às formas
comunitárias de organização da vida se fundamenta, portanto, na necessidade de criar um
sistema que autorize a diferenciação contínua de seus elementos. Nietzsche privilegia a
multiplicidade instável em detrimento da unidade estável como forma de garantir o direito à
diferença específica. A estratégia de transvaloração de todos os valores com que se avalia o
28
mundo aposta dessa forma na supremacia da vontade de poder como um impulso
indeterminado, um instinto irrealizado, um desejo criador que conduz cada vez mais longe.
À medida que se intensifica a exigência de uma moral para todos, e a “Moral sempre foi um
leito de Procusto” (2000, p. 100), cresce a necessidade de resistir à homogeneização das
diferenças. A homogeneização da vontade que se processa no interior do movimento
civilizatório tem por efeito a redução das perspectivas substanciais. As restrições do
processo civilizatório ampliam seu domínio progressivamente com o aperfeiçoamento da
organização capitalista e democrática. O princípio da igualdade, fundamento de utopias
aparentemente libertárias, é então uma ameaça à vontade de poder, força de diferenciação
que promove o pathos da distância. Nietzsche assinala em A genealogia da moral uma série
de barreiras que o processo civilizatório, movido pelo desejo de controlar a liberdade da
vontade, impôs à transformação das perspectivas de avaliação do mundo:
Os meios que se empregam contra a dor são os que reduzem a vida à sua menor expressão
possível: nada de vontade, nada de desejo, nada de paixão, nada de sangue; não comer sal
(higiene dos faquires); não amar; não odiar; não se perturbar; não se vingar; não se
enriquecer; não trabalhar; mendigar; nada de mulheres, ou o menos possível; quanto ao
intelecto, o princípio de Pascal: é preciso bestializarmo-nos. Resultado em linguagem
moral: aniquilamento do eu, santificação; e em termos fisiológicos: hipnotização,
hibernização, mínimo de assimilação compatível com a vida. Para chegar a este fim, gastouse uma soma imensa de energia humana, talvez em vão !... (1991, p. 91).
A vontade de autodeterminação se distingue pela promoção de formas de vida
singulares. O excesso de força plástica da vontade alimenta uma cadeia de acontecimentos
que não reconhece a determinação definitiva da realidade existencial como uma ordem de
natureza intemporal. A hipótese da vontade atuante fundamenta uma ontologia do ser
baseada exclusivamente na emergência imperativa da força que excita a atividade
incorporativa no mundo. Toda dominação que a vontade estimula corresponde a uma nova
29
interpretação, a uma outra organização que se conforma a uma ordem determinada. Deixarse arrebatar pela vontade que estabelece valores relacionados com o instinto de
autoconservação da espécie constitui o modo de ser de todo vivente. A roda da vida gira em
torno dos criadores de novos valores em Assim falou Zaratustra:
Em verdade, foram os homens a dar a si mesmos o seu bem e o seu mal. Em verdade, não o
tomaram, não o acharam, não lhes caiu do céu em forma de voz. Valores às coisas conferiu
o homem, primeiro, para conservar-se – criou, primeiro, o sentido das coisas, um sentido
humano! Por isso ele se chama homem, isto é: aquele que avalia. Avaliar é criar: escutai-o, ó
criadores! O próprio avaliar constitui o grande valor e a preciosidade das coisas avaliadas.
Somente há valor graças à avaliação; e, sem a avaliação, seria vazia a noz da existência.
Escutai-o, ó criadores! Mudança dos valores – é mudança dos criadores. Sempre destrói,
aquele que deverá ser um criador. Criadores foram, primeiro, os povos, e só mais tarde, os
indivíduos; na verdade, o próprio indivíduo ainda é a mais jovem criação. Outrora, os povos
suspendiam por cima de si uma tábua do bem. O amor que quer dominar e o amor que quer
obedecer criaram juntos, para si, essas tábuas (Nietzsche, 2000, p. 86).
A superação transforma os valores com que os homens avaliam o mundo a cada vez.
A mudança de perspectiva que caracteriza o processo de transvaloração rompe com
qualquer contenção que busque estancar o fluxo incessante da formação de novos valores.
Com o florescimento da vontade, plena de auto-superação, o seu campo de ação próprio,
com unidades de força e medidas de valor, pode conviver com a divergência do que é
instalado. Criar valores nesse processo é determinar verdades relativas às perspectivas de
avaliação. A vontade de poder não significa apenas querer o poder como síntese do projeto
de domínio sobre o mundo que estabelece sua finalidade na subjugação absoluta do que se
encontra à sua volta. A vontade de poder considera o que deseja um princípio determinativo
de metamorfoses que adquirem formas que se transformam continuamente em formações
em última instância inconformadas. As ações humanas se inserem na ordem das empresas
imprevisíveis quando se deixam envolver no campo de força da vontade de poder. Sob sua
orientação a vontade de saber corre o sério risco de se entregar sem reservas à vontade de
30
verdade, sobretudo quando acredita que a verdade possa existir além de toda contingência
possível. A vontade de verdade em excesso é a negação da vontade de saber. A ambição
metafísica fundamenta a política de conservação de um sujeito determinado que confia
excessivamente na identidade de uma ordem privilegiada do ser. O projeto metafísico se
desenvolve assim dentro da pretensão de verdade dos universais absolutos. A perspectiva
de domesticação da verdade nunca esteve de fato indiferente ao controle dos mecanismos
de poder e afastada como gostaria da possibilidade de imposturas com relação ao que não
pode por livre-arbítrio ou arrebatamento concordar com os pressupostos da dominação.
A vontade de poder (wille zur macht), a vontade de saber (wille zum wissen) e a
vontade de verdade (wille zur wahrheit) conservam uma correspondência sintática e
semântica. A vontade de saber pressupõe que todo o existente possa ser pensado e
conhecido. A reflexão sobre a ambição metafísica de atingir a verdade essencial demonstra
que a vontade de saber percorre espaços críticos. O cogito cartesiano antecipa algumas
dificuldades do projeto de conquista. Na definição ego cogito, ego sum quem está pensando
o pensamento?, o que se entende por atividade de pensar?, como ter certeza de que o
pensamento não se desvia da verdade na consciência? Nem a inspeção da consciência
crítica, nem os esquemas da razão objetiva estão imunes aos impulsos desconhecidos que
constituem as diversas perspectivas de avaliação da vida. Sem desenvolver conceitualmente
as forças inconscientes que operam na vontade de poder, Nietzsche freqüentemente se
refere a uma força impessoal, indeterminada, que se manifesta em seu interior, de forma
que a vontade é o conjunto de forças inconscientes que decide cada passo arriscado. A
teoria da vontade, na medida em que afirma a liberdade do querer na definição dos juízos
de valor, não deve, portanto, ser confundida com uma forma de subjetivismo centrado na
identidade substancial. Nietzsche acolhe o sujeito eu como uma realidade que não existe
31
por si mesma, como uma herança metafísica de conservação da identidade em si mesma, da
mesma forma que a alma é uma criação que visa garantir a conservação de uma espécie.
Quando o homem inventou a linguagem articulada, disponibilizou em seu sistema o eu
enquanto substância determinada, assim tornou possível a existência da unidade primordial.
Não demorou muito para que identificasse essa identidade substancial na base de todos os
seres. A expressão "conhecimento puro, livre da vontade" apresenta uma contradição em
termos, sobretudo porque “razão”, “consciência” e “verdade” estão submetidas ao desejo da
vontade que cria com a força do querer que lhe é própria. Embora René Descartes
reconheça a indeterminação da vontade enquanto força extensiva que ultrapassa o limite do
pobre intelecto, ele não duvida em nenhum momento de que os procedimentos da
investigação objetiva, aplicados na exclusão da percepção sensível e imaginativa da
verdade, contenham a sede indeterminada da vontade, de forma a produzir um
conhecimento livre do engano dos juízos equivocados. A vontade cartesiana é uma
liberdade de arbítrio, uma faculdade de julgamento ampla e perfeita, imagem e semelhança
da vontade divina, capaz, se bem aplicada sob o controle da razão crítica, de discernir
cuidadosamente o verdadeiro do falso (Descartes, 1999, p. 113-115). Para não haver erro
no julgamento das coisas existentes, a vontade decisória deve ser contida dentro do limite
do conhecimento objetivo ou do intelecto racional. A causa do erro e da falsidade se
encontra precisamente no uso indevido da vontade deliberativa que julga coisas sobre as
quais não possui um conhecimento claro e distinto. O intelecto é distinto do corpo, logo
pode existir sem ele, como os acidentes dos corpos se distinguem da natureza essencial que
os sustenta na realidade. A finalidade do procedimento racionalista é determinar a verdade
das coisas sem a participação dos acidentes que podem contaminá-la indevidamente, e as
próprias coisas levam a desconsiderar os acidentes em sua percepção e vislumbrá-las
32
somente em relação às categorias que eliminam a confusão dos sentidos, como
comprimento, largura e extensão, substância, duração e número. Contudo Descartes
reconhece no clarão de um instante a superfície acidentada que se estende entre a vontade
infinita e a razão que tenta conter sua expansão: "Mas, que sou, então? Coisa pensante. Que
é isto? A saber, coisa que duvida, que entende, que afirma, que nega, que quer, que não
quer, que imagina também e que sente. Não é certamente pouco, se essas coisas em
conjunto me pertencem" (1999, p. 45). Ante uma vontade que não conhece limites, "a
percepção do intelecto deve preceder sempre a determinação da vontade" (1999, p. 119). O
sujeito cartesiano, que tem a existência fundada na atividade de pensar, deve ser apenas
uma substância pensante. Assim há paralelismo entre ser e pensamento, a natureza
fundamental da alma é constituída somente de pensamento, o cogito encerra uma
concepção isenta de toda dúvida. Descartes se orgulha de ter conseguido demonstrar duas
grandes verdades nas Meditações sobre filosofia primeira: a existência de Deus e a
existência do sujeito. Somente afastando-se progressivamente do campo sensível, como
veremos em Platão em outro momento, pôde alcançar tal conhecimento indubitável sobre a
natureza. Para evitar o confronto com a dúvida desestabilizadora, Descartes se apegou à
consciência da verdade sem antagonismos.2
Nietzsche, por sua vez, concebe a vontade de poder como uma força que não pode
ser contida por nenhum estratagema da razão, nem apreendida em sua totalidade, pois a
atividade do querer lhe parece, antes de mais nada, algo demasiado complicado, "algo que
somente como palavra constitui uma unidade". Assim escreve em Além do bem e do mal:
2
A propósito de Descartes, Johannes Hirschberger chegou a escrever: "O sistema de toda a Filosofia deve
desenvolver-se tão clara e conseqüentemente como as verdades matemáticas e geométricas" (1967, p. 107).
Como demonstração dessa hipótese, conta uma anedota a respeito de Descartes. Diz Hirschberger que "A
inquietação filosófica pela clareza e a verdade tinha-se apoderado dele com tal intensidade, que prometeu
fazer uma peregrinação a Loreto, se a Virgem o ajudasse a superar as suas dúvidas sobre a possibilidade de
distinguir o verdadeiro do falso. [...] Quatro anos mais tarde fez a peregrinação" (1967, p. 105-106).
33
Ao menos uma vez sejamos cautelosos, então; sejamos afilosóficos – digamos que em todo
querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensações, a saber, a sensação do estado que se
deixa, a sensação do estado para o qual se vai, a sensação desse deixar e ir mesmo, e ainda
uma sensação muscular concomitante, que, mesmo sem movimentarmos braços e pernas,
entra em jogo por uma espécie de hábito, tão logo queremos. Portanto, assim como sentir,
aliás muitos tipos de sentir, deve ser tido como ingrediente do querer, do mesmo modo, e
em segundo lugar, também o pensar: em todo ato da vontade há um pensamento que
comanda; – e não se creia que é possível separar tal pensamento do querer, como se então
ainda restasse vontade! Em terceiro lugar, a vontade não é apenas um complexo de sentir e
pensar, mas sobretudo um afeto: aquele afeto do comando (2002, p. 24, § 19).
A vontade confere ao querer o poder de realizar o que o homem deseja trazer ao
mundo. Contudo, não é fácil determinar a natureza desse homem. Basta lembrar que “Ele
primeiramente extraiu o conceito ser do conceito eu, ele posicionou as coisas como seres
segundo sua imagem, segundo seu conceito do eu enquanto causa” (Nietzsche, 2000, p. 44).
Embora a natureza do querente não passe de uma fábula, a consecução do ato de vontade
desencadeia um fenômeno em que o querer, o sentir e o pensar se misturam. O ato de
vontade se processa através de uma divisão interna – alguma coisa é simultaneamente a
parte que comanda e a parte que obedece. O querente está envolvido numa intricada teia de
afetos, que explora a diferença de potencial entre a coação, a resistência e a adesão final. A
crença no êxito da vontade não deve, portanto, ofuscar sua composição heterogênea, não
deve acreditar excessivamente no sujeito do comando, até porque a vontade não está imune
de ser surpreendida pelo engano. A natureza da vontade explora a multiplicidade do querer,
que envolve perspectivas substanciais, apreciações de valor dominante, afetos que estão
presentes na economia global da vida por princípio e de modo essencial. Compreender a
vontade em várias gradações de sentido, sobretudo como o impulso de conhecer a
constituição e a reconstituição das formações que regulam a vida em si mesma, é necessário
para situar sem imposturas a demanda da verdade no interior do conhecimento. A vontade
34
de saber pode explorar o mundo dos seres sem procurar determiná-los de uma vez por todas
entre os limites estreitos de uma definição dogmática de sua natureza. Há uma vontade de
saber que demanda apenas o prazer de conhecer os enigmas que se oferecem de todos os
lados sem se preocupar com a determinação definitiva da verdade. Quando não se encontra
nenhuma forma de prazer na dispersão do conhecimento, a vontade de saber se degenera
rapidamente em vontade de verdade, logo perde grande parte de sua capacidade de intervir
na regularidade da tradição, se embriaga de uma nova espécie de universalismo ou de uma
nova versão de ceticismo que põe em risco a confiança na vida. O ceticismo tem o poder de
debilitar a energia do querer, paralisando a vontade de criação por longo tempo.
A vontade de saber está associada à proliferação dos diversos discursos sobre a
sexualidade do sujeito moderno na História da sexualidade de Michel Foucault. Desde o
século XVII o sexo não cessou de provocar uma multiplicação de discursos que procuram
apreendê-lo, especificá-lo, distribuí-lo em suas variedades mais imediatas. Seja na ordem
da economia ou da pedagogia, seja na ordem da medicina ou da justiça, tais discursos não
se multiplicam fora do regime do poder, porém lá onde o poder se exerce e como meio para
seu exercício. O discurso é um bem que se torna objeto de uma luta política. A vontade de
saber que procurou encontrar laboriosamente a verdade do sexo é caudatária das injunções
do amplo projeto da vontade de saber que sustentou a instituição, a promoção e a
conservação do discurso científico no pensamento ocidental. A scientia sexualis constitui
um vasto domínio de investigação da sexualidade humana, investigação que se fundamenta,
ou pelo menos assim o deseja, num horizonte único de objetividade. A constituição de um
código abstrato de explicação da realidade depende do investimento em estruturas racionais
de definição. Quanto mais universais são as leis de construção de um discurso científico,
mais este assevera o conhecimento do mundo, mais se considera o guardador do
35
conhecimento verdadeiro. A exigência de um alto grau de formalização na pesquisa
científica pressupõe unidade do objeto de investigação, qualidade da linguagem utilizada
em sua definição, identificação das regras de funcionamento do conhecimento
racionalizado. A fixação de um conjunto de categorias formais praticamente impossibilita o
despertar crítico para os elementos excêntricos que escapam ao sistema de explicação da
vida. A preocupação com a unidade do discurso utilizado, ou a uniformidade da
identificação dos diferentes elementos da realidade que se oferecem à definição, determina
a compreensão do termo latino conceptus somente no sentido de "ação de conter alguma
coisa". A delimitação de uma série de conceitos coerentes entre si, cujos usos e conteúdos
são estabelecidos com pouca ou nenhuma suspeita, formaliza uma teoria abstrata que serve
de modelo a um número indefinido de descrições objetivas. A formação de teorias de
explicação, de esquemas de apropriação e de conceitos de determinação proporciona à
ciência uma natureza racional. Se investe na definição de uma sexualidade normal ou
patológica, é porque deseja atingir o conhecimento final, mesmo que este insista em se
esquivar da malha conceitual. A ciência projeta o domínio de determinação da verdade
(Foucault, 2003, p. 34-36, p. 62-69, passim). Galileu, Descartes e Newton atuam em
momentos decisivos da formação da ciência moderna quando propõem os primeiros
métodos de matematização da vida em si mesma. As proposições se localizam no plano da
lei universal, da lógica invariável, da normatização racional. Foucault redistribui a
reiteração dos fundamentos e a multiplicação das rupturas em A arqueologia do saber, onde
questiona a teleologia e a totalização racionais que presidem a formação dos discursos
científicos, uma vez que os objetos das ciências constituem feixes de relações complexas –
contínuas e descontínuas (2002, p. 36).
36
A ciência moderna não distingue a natureza e o homem senão em princípios
determinativos que sintetizem as experiências particulares de fenômenos cuidadosamente
observados. A confirmação do sistema científico como figura proeminente da verdade
mostra sua dificuldade de pensar seus próprios fins imediatos enquanto desdobramento do
esforço emancipatório empreendido no limiar da proto-história humana. O projeto de
emancipação que regula o processo civilizatório renova continuamente os esquemas de
autoconservação. Theodor Adorno e Max Horkheimer conferem à ciência em geral a
função de instrumento fundamental para a consumação do projeto emancipatório na
Dialética do esclarecimento. O objetivo da razão esclarecida é desenvolver um saber
utilitário para neutralizar a cólera destruidora da natureza desconhecida que ameaça a
sobrevivência da espécie humana. O saber não é mais um fim em si mesmo, como queria a
razão objetiva em sua primeira fase de vida, mas um meio projetado antecipadamente para
se atingir um fim determinado. Poder e conhecimento estão relacionados desde a mais
remota representação. Se o saber instaura as condições necessárias para o exercício do
poder, a soberania delimita a existência específica do conhecimento no sistema de
dominação. O Gênese anuncia o início do processo de domínio sobre o mundo no ato
designativo dos seres. O anjo com a espada de fogo que desterra o casal ancestre do paraíso
e o coloca no caminho do progresso técnico, baliza a arrancada inevitável da dialética do
esclarecimento que deposita uma confiança inabalável na dominação proclamada nos
diferentes níveis de racionalização. O confronto com a natureza produz experiências
antagônicas em sua trajetória que ainda permanece inacabada, uma vez que o processo
civilizatório jamais pôde realizar-se de vez. Das fórmulas mágicas da fase animista às
fórmulas matemáticas da fase científica o esclarecimento comanda o aperfeiçoamento das
formas de controle sobre a natureza. Calculabilidade e utilidade são os critérios
37
operacionais mais evidentes da dialética do esclarecimento, que extrai da ciência
experimental o postulado de que todo o mundo está escrito em linguagem matemática. A
operação do conhecimento lógico é regulada por critérios formais que definem o rigor
científico dos diferentes níveis de formalização. A lógica formal, que ignora o que não pode
ser reduzido à unidade, se fundamenta na exatidão do número, que é a categoria por
excelência da unidade. Para o positivismo que assumiu a magistratura da razão esclarecida,
o conhecimento se restringe à formalização lógica do cálculo matemático. À medida que o
esclarecimento busca reproduzir a essência da ordem existente na imagem mítica ou na
fórmula matemática, o racionalismo matemático apenas considera uma espécie de razão
objetiva como fonte de conhecimento, ele limita o pensamento a instrumento da
autoconservação. O núcleo da racionalidade civilizatória possui uma relação ambivalente
com a dominação. Quanto mais o homem se via livre da tirania da natureza, mais nítida se
tornava sua confinação no espaço da técnica. Sob o prodigioso esforço do esclarecimento
para libertar-se das forças cegas do animismo, Adorno e Horkheimer percebem a
permanência no círculo de influência da mitologia:
Quando, no procedimento matemático, o desconhecido se torna a incógnita de uma equação,
ele se vê caracterizado por isso mesmo como algo de há muito conhecido, antes mesmo que
se introduza qualquer valor. A natureza é, antes e depois da teoria quântica, o que deve ser
apreendido matematicamente. Até mesmo aquilo que não se deixa compreender, a
indissolubilidade e a irracionalidade, é cercado por teoremas matemáticos. Através da
identificação antecipatória do mundo totalmente matematizado com a verdade, o
esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do mítico. Ele confunde o pensamento e a
matemática. Desse modo, esta se vê por assim dizer solta, transformada na instância
absoluta (1985, p. 37).
A dominação irrefletida da natureza é idêntica à dominação irracional do homem;
obcecada pela necessidade de autoconservação, reproduz formas reificadas de organização.
O formalismo lógico do cálculo abstrato se torna a medida de todas as coisas, assim o saber
38
submete as relações concretas entre os homens à ordem lógica em seu conjunto, logo o
esclarecimento se esquece da exigência de o pensamento se pensar a si mesmo. O processo
matemático de conhecimento da natureza se extravia da autoconservação sempre que insere
o próprio ser humano numa ordem social reificada. A ciência se revela um componente
essencial do projeto de domínio sobre o mundo, pois não consegue promover a vontade de
saber senão dentro do horizonte da vontade de verdade. Contudo, os achados científicos
existem no horizonte de um saber heterogêneo, cujas formulações convivem num espaço de
defasagens conceituais e formalizações esquemáticas. Nem mesmo o mais alto grau de
racionalização escapa ileso da manifestação do imaginário, dos interesses de preservação de
uma espécie, das contingências específicas de uma época. A racionalidade que aspira ao
controle do fenômeno da vida não pode esquivar-se do questionamento de sua necessidade
objetiva. A ciência não dispõe do distanciamento necessário para pensar sua emergência
histórica, nem tampouco para fazer a crítica dos critérios formais em que identifica sua
cientificidade. É preciso não esquecer que a história das ciências modernas não configura
uma trajetória retilínea; define-se antes como uma elipse marcada por fortes inflexões, de
forma que súbitas descontinuidades interferem na formação de seus objetos. Para
Alexandre Koyré "Poder-se-ia mesmo dizer que não só a astronomia, como também a
ciência como tal, entraram, com a invenção de Galileu, numa nova fase de seu
desenvolvimento, a fase que poderíamos chamar de instrumental" (1979, p. 92). A invenção
do telescópio mudou profundamente a visão que se fazia da constituição do espaço. De
Galileu data a moderna matematização da ciência experimental. Desde então a ciência não
abandonou mais o fluxo das inovações técnicas que não conhecem limites. Ante a
existência de uma ciência que investe na revisão constante de seus conteúdos formais, o
saber científico não deve ser confundido com uma verdade absoluta, sobretudo porque não
39
pode assegurar a validade irredutível de seus axiomas sem recair na estagnação do
pensamento. A dúvida insere a desconfiança na ordem do saber. A verdade que permanece
no tempo pode tornar-se mais uma impostura da imaginação na ordem do conhecimento.
Uma fantasia do passado pode tornar-se a mais nova verdade do momento.
Assim como a ciência não é capaz de assegurar a validade universal de sua verdade,
a filosofia não deve ser compreendida como uma forma de conhecimento de natureza
infalível. Contrariando o desejo filosófico de atingir o centro de todo ser existente, a
filosofia pode ser compreendida como uma maneira de organizar o mundo que pode passar
por transformações, redistribuições, ajustes em suas articulações fundamentais. O homem
se singulariza por ser um vivente que pode influenciar em sua formação. De fato o homem
é um ser que é em parte produto de sua própria criação. Os sinais humanos estão em tudo o
que toca, por isso o homem pode ser transformado. A reinvenção contínua do mundo que o
homem imagina ser de tal modo torna a filosofia um sistema de conceitos que em sua visão
de conjunto é sempre passível de renovação. Para Zaratustra "Nenhum valor têm as coisas,
no mundo, sem que, antes, alguém as apresente e represente; grandes homens chama o
povo a esses apresentadores" (2000, p. 78). O pensamento filosófico se fundamenta,
portanto, na criação de todo um aparato teórico de sistematização. O sonho do filósofo
dogmático é produzir um sistema de conceitos que responda isento de fraude à demanda da
verdade. O conjunto de soluções que Platão apresenta como resposta às questões
fundamentais no Sofista visa determinar a natureza da verdade. O objetivo da discussão
conceitual acerca da potência de comunicação entre o ser e o não-ser é determinar a
qualidade eidética dos seres por meio da diferenciação entre o modelo, a cópia e o
simulacro, ou entre a perfeição natural da idéia, a boa representação da cópia e a má
analogia do simulacro. O requerente da verdade, sobretudo no pensamento essencialista,
40
deseja projetar o sistema de conceitos mais apropriado à definição da natureza das coisas.
Apesar de toda resistência oferecida ao círculo reduzido das construções metafísicas, até
mesmo Nietzsche elaborou um esquema de apropriação do mundo em seu caráter
inteligível fundado somente num conceito aglutinador da realidade existencial.
Por mais essencial que a vontade de poder seja para o pensamento que se confunde
com os impulsos do querer, esse princípio sintetizador do fenômeno da vida em si mesma
não determinou a formação de uma imagem conservadora do trabalho filosófico. Não
somente o mundo das coisas está em movimento constante, como a forma do pensamento
não se cristaliza definitivamente. O pensamento se reveste da idéia de que o filósofo jamais
deve estabelecer-se no domínio do senso comum. Zaratustra representa a imagem do
filósofo apartado da convivência social que percorre regiões distantes para explorar o que
ainda permanece desconhecido. O afastamento alternado com a aproximação das
aglomerações constituem dois movimentos essenciais, cuja experiência propicia as mais
amplas perspectivas sobre as apreciações de valor. A rejeição do convívio social através do
isolamento na caverna no cimo da mais alta montanha torna possível a diferenciação de
Zaratustra como um criador de novos valores. A caverna em que ocasionalmente Zaratustra
habita, tão ampla quanto profunda, ainda é um local de sombras e ilusões, mas também de
lampejos e revelações. O isolamento de Zaratustra com seus animais – a águia e a serpente,
o mais altivo e o mais prudente – agencia uma série de deslocamentos no interior dos
sistemas de sentido. O isolamento do eremita se intensifica à medida que se desvia da
normalidade dos padrões, distanciando-se das certezas imediatas, como também do
conhecimento puro. Para Zaratustra “É longe da feira e da fama que se passa tudo o que é
grande; é longe da feira e da fama que moraram, desde sempre, os inventores de novos
valores" (2000, p. 79), o que confere à vontade de criação um valor determinante na
41
caracterização da relação do homem com a verdade: "Sim, este eu, e a contradição e
confusão do eu, é ainda quem mais honestamente fala do seu ser: este eu que cria, que quer,
que estabelece valores e que é a medida e o valor de todas as coisas" (2000, p. 57). Um
pouco à frente: "Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, é o que torna a vida mais
leve. Mas, para que o criador exista, são deveras necessários o sofrimento e muitas
transformações" (2000, p. 115). Comportar-se como uma força coercitiva da vontade de
criação é um traço essencial da moral que conserva sempre os mesmos valores, que
pressupõe a necessidade de horizontes limitados, de tarefas a serem cumpridas
prontamente, de alvos determinados na existência. O homem inventou a imagem da boa
consciência para poder usufruir de sua alma como a simples e familiar hospedeira de um
mundo bem constituído. As receitas de conduta visam controlar as paixões e inclinações
que contaminam a boa consciência com o mau exemplo. A moral se fundamenta na teoria
das relações de dominação entre os homens, sob as quais se origina o fenômeno da vida em
sociedade; mesmo sua organização mais antiga é determinada pelo estabelecimento de
princípios reguladores da ordem comunitária. A moral revela uma profunda reverência
pelas configurações do passado e pelos primeiros contatos com a divindade. Domesticar o
homem e determinar seu gênero comandam sua vontade. As leis incorporam a força
original da moral, porque derivam diretamente da vontade divina. Quanto mais forte é o
desejo de domínio das boas ou más ações, mais intenso se revela o fenômeno de
naturalização das leis morais no processo civilizatório. A naturalização se confunde com os
costumes das agregações sociais: eras, povos, classes etc. Se não há absolutamente um fato
moral na realidade, há certamente escolhas avaliativas em sua formação interna. A moral
que privilegia apreciações de valor absoluto é incompatível com a realidade cambiante.
Vimos que as apreciações de valor não podem aspirar à ascendência sobre a verdade,
42
porque juízos de valor sobre a vida projetam suas crenças no interior das coisas. A crença
em verdades eternas é passível de crítica na medida em que não responde ao fenômeno vital
da falta de medida que percorre os acontecimentos.
A crítica faz parte de um amplo movimento de desconfiança generalizada em
relação às formulações mais ou menos sistemáticas que criaram raízes no processo
civilizatório, como o pensamento filosófico, o conhecimento científico e o catecismo
religioso. A doutrina cristã concedeu ao homem uma meta e uma natureza, ainda que fosse
mais além, num futuro sempre adiado. O cristianismo representa o movimento de oposição
a toda vontade de diferenciação quando desqualifica o caráter de exceção que em sua forma
de privilégio não se ajusta à moral de domesticação. A crença na existência de realidades
essenciais que não conhecem a metamorfose, submetida continuamente à geração e à
morte, impedia que o homem entrasse em conflito com a contingência imediata. A
fundamentação da verdade na autocerteza da consciência racional visava anular as
propriedades ativas do fragmento contraditório. Nietzsche plantou sementes de discórdia no
âmago desses sistemas de regulação da vida. Cada vez mais intensifica-se a desconfiança
das criações humanas que inventam um mundo determinado, um sentido privilegiado, uma
história coerente. Sempre resta fazer uso das apreciações de valor como sublimação das
barreiras que se opõem ao sentido visado, mas a criação de valores não se encontra sempre
no mesmo contexto, o que favorece a emergência de novas perspectivas. As perguntas
desdenham caprichosamente as respostas que são oferecidas, e as metas salvacionistas não
conferem mais nenhum sentido ao mundo em dissolução. Nietzsche reflete sobre a
motivação desse processo em A vontade de poder:
43
O que aconteceu em suma? Havia-se alcançado o sentimento da falta de valor quando se
compreendeu que nem com o conceito fim, nem com o conceito unidade, nem com o
conceito verdade se podia interpretar o caráter indefinido da existência. Assim não se
alcança nem se obtém nada, falta a unidade que encadeia a multiplicidade do acontecer; o
caráter da existência não é verdadeiro, é falso..., já não se tem absolutamente nenhum
fundamento para se convencer a si mesmo da existência de um mundo verdadeiro... Em
resumo: as categorias fim, unidade, ser, com as quais atribuímos um valor ao mundo, são
desprezadas de novo por nós, agora o mundo aparece privado de valor... (1981, p. 37).
Nietzsche opera uma redistribuição do valor de categorias fundamentais. O homem
abarca o mundo com valores que sustentam perspectivas de utilidade para a conservação e
ampliação da existência de sua espécie. As categorias de apropriação se referem a um
mundo concebido a partir de uma situação bem localizada na existência. O homem continua
comportando-se como a medida e o sentido do valor de todas as coisas. Para Zaratustra "O
homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um
abismo". E acrescenta: "O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que
pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso" (2000, p. 38). Podemos ignorar
a evidência da transição e do ocaso nas realizações impulsionadas pela vontade de criação,
não agimos muito diferente do avestruz que esquece por inapetência a cabeça no buraco,
mas isso não libera a vontade prisioneira das metas que restringem o horizonte da vida.
Quem deseja o Éden quer um fim terminal. Enquanto espera atingir o paraíso o homem
abre mão de sua força de vontade e segue apenas a orientação da ordem preestabelecida. O
ateísmo de Zaratustra, consumado em sua oposição radical aos sistemas teleológicos
tradicionais, rompe com a finalidade do bem mais elevado do mundo transcendental,
privilégio da moral ontológica que sobrevaloriza o ser imutável, intemporal e uniforme. A
vontade de criação se choca com as metas estabelecidas de uma vez por todas.
A "corda" como a "ponte" estabelecem uma conexão entre um ponto e outro ponto,
e uma meta continua sendo um sentido, uma direção, uma inteligibilidade determinada. O
44
ser, que é sempre um vir-a-ser na ótica do devir-outro, está enredado nas linhas do tempo
histórico, que se divide, se separa, se modifica infinitamente. “Ele tem tempo, ele toma o
tempo para si, – ele não pensa de modo algum em ficar pronto” (Nietzsche, 2000, p. 62).
Zaratustra propõe uma meta para a vida, mas não um sentido que anula a vontade de vida.
Para se aproximar do estágio do super-homem, deve-se deixar levar pelo devir onde o que é
vem a ser. A vontade de criação, ilimitada vontade de superação que reflui para si mesma,
impulsiona a reformulação das apreciações de valor, passíveis de serem modificadas toda
vez que a vontade de saber inicia mais uma demanda da verdade. Valores, interpretações e
perspectivas se correspondem na procura comprometida com o sentido das coisas, nessa
entrega a descoberta do desconhecido tenta superar o enigma do mundo. Certamente os
caminhos percorridos nesse processo não desenham o sentido mais seguro, mas tornam
possível o afastamento da tautologia do eternamente igual a si mesmo. Para quem valoriza
o princípio de indeterminação que se manifesta no interior das metamorfoses da natureza, a
transitoriedade da vontade que se movimenta num mundo de perspectivas deve receber
mais créditos do que lhe são concedidos usualmente pela instância decisória da cultura.
Tudo está em movimento constante. Todas as coisas fluem e refluem continuamente. Nada
há de permanente no mundo a não ser o transitório. A vontade de poder revive nesses
termos um princípio fundamental do pensamento de Heráclito. O devir que nunca se sabe
se consuma na transição de um ser assim para outro ser assim. O tempo escorre na
realidade como o rio heracliteano sem nenhuma fixação na autoridade da tradição. Embora
algumas barreiras possam ser interpostas para tentar conter o fluxo do tempo, o devir
modifica a aparência das coisas que passam como as cores que mudam no ocaso da estação.
45
"Ó Zaratustra", disseram, então, os animais, "para os que pensam como nós, as próprias
coisas dançam: vêm e dão-se a mão e riem e fogem – e voltam. Tudo vai, tudo volta;
eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano
do ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo
separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser.
Em cada instante começa o ser; em torno de todo aqui rola a bola acolá. O meio está em
toda parte. Curvo é o caminho da eternidade" (2000, p. 259-260).
Se existe um lugar em que o filósofo possa habitar sem se comprometer em excesso,
o melhor habitat é certamente um não-lugar ou um lugar-a-se-fazer. A necessidade de se
afastar da ordem do momento constitui um locus de instabilidade para o pensamento,
porém a vinculação do pensamento à lógica deveniente pode ampliar o horizonte das
definições encontradas. Para Nietzsche o filósofo tem "o dever da desconfiança, do olhar
oblíquo e malicioso a partir de abismos de suspeita" (2002, p. 41, § 34). Hoje é ainda mais
constrangedor esperar da atividade de pensamento que procura dar um sentido ao mundo
uma suposta neutralidade desinteressada. A desconfiança generalizada deixa de ser um
simples método de investigação da verdade para se tornar um princípio fundamental da
nova cosmovisão. Zaratustra é o filósofo do futuro porque ainda está por chegar, porque
não pode ajustar-se a seu próprio tempo, porque é impelido por uma força que quer sempre
mais. Zaratustra ensinou a duvidar do sentido das palavras, do sistema conceitual que se
justifica a si mesmo, da idéia de imutabilidade de essências ensimesmadas. O pensamento
que plasma a perda de referencia alimenta a insidiosa dúvida que circunscreve os produtos
da razão e que constitui um verdadeiro desafio à permanência das apreciações de valor sub
specie aeterni. Um dos acontecimentos emblemáticos dessa perda aparece consubstanciado
na morte de Deus que é anunciada por Zaratustra. Trata-se de uma morte que envolve uma
complexa rede de relações, pois ceifa simultaneamente uma série de outras vidas. A morte
de Deus arrasta em seu crepúsculo o homem integrado, que perde a identidade substancial
definida como uma unidade coerente de sentido. Com a morte de Deus, que retém um
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mundo de relações hierarquizadas, o homem segue sua própria vontade. A morte do homem
anuncia a geração do super-homem – uma espécie de homem modificado. Para Zaratustra
"É melhor não termos nenhum Deus, é melhor forjarmos o destino com as nossas próprias
mãos, é melhor sermos doidos, é melhor sermos Deus nós mesmos" (2000, p. 308)! A
morte oscila, portanto, entre a perda e o ganho. A partir do momento que convive com o
dilaceramento de fundamentos essenciais, o homem passa a equivocar-se com a verdade,
porém conquista a possibilidade de construir novas edificações. A transvaloração configura
modos de ser que se encontram no devir em constante luta com as finalidades coercitivas
dos movimentos migratórios. A urgência de sentido é permanente nesse sistema de
estrutura aberta e de múltiplas configurações. Há uma movimentação incessante do
desconhecido no próprio sentido que não o deixa estabilizar-se completamente.
Nietzsche conhece a violência diária do isolamento dos que não têm um lugar
apropriado na sociedade em que se encontram. Identifica-se como o derradeiro iniciado e
último discípulo de Dioniso, o deus tentador da consciência, de espírito impulsivo e
arrebatador, que vive encerrado nas excentricidades das idéias incompreendidas e
caluniadas. Somente quem não nega a vida em seu constante vir-a-ser pode freqüentar o
templo desse deus que conserva um excedente de força para compor novas qualidades no
ocaso da experiência. Para Nietzsche a virtude é uma forma de exceção. O espírito livre
carrega durante muito tempo o sinal da exceção que o separa da comunidade dos iguais. O
homem-sem-lugar sempre se achou por necessidade em contradição com a opinião de seu
próprio tempo. Nietzsche confessa que "seu inimigo sempre foi o ideal de hoje" (2002, p.
118, § 212). A caracterização do filósofo como a má consciência de seu tempo acompanha
a filosofia desde a arrancada inevitável em que se contrapõem os maiores antagonismos. O
desfecho do julgamento de Sócrates, considerado subversivo por seus contemporâneos que
47
não admitiam o questionamento de seu conhecimento, evidencia as contradições por que
passa o pensamento que não se ajusta ao conhecimento hegemônico. O processo de
julgamento descrito por Platão na Apologia de Sócrates é um inquérito da verdade. Diante
dos juízes Sócrates precisa demonstrar em sua defesa a falsidade das acusações que lhe são
imputadas por seus inimigos e podem culminar em sua morte. "Sócrates é culpado de
investigar, em excesso, os fenômenos subterrâneos e celestes, de fazer prevalecer sobre a
melhor a causa pior e de ensinar aos outros essa doutrina" (19b). No discurso de defesa
Sócrates afirma que a obrigação de responder por crimes que jamais seria capaz de
empreender deve ser atribuída à calúnia e à inveja de seus inimigos. Tudo começou quando
certa vez Querefonte, um discípulo de Sócrates, teve a ousadia de perguntar ao deus de
Delfos se existia no mundo um homem mais sábio do que Sócrates. Pítia, a profetisa de
Apolo, respondeu-lhe que não existia mais ninguém na face da terra. Por se reconhecer
como um homem naturalmente sem sabedoria, Sócrates não entendeu de imediato o sentido
do oráculo, promovendo na seqüência uma profunda investigação para poder definir o
sentido das palavras de Apolo. Então decidiu interrogar os homens “sábios” para esclarecer
se o oráculo estava mentindo, o que era bem pouco provável. Sócrates interrogou políticos,
poetas e artífices e constatou que nenhum deles era de fato tão sábio quanto julgava ser.
Nesse aspecto diferenciava-se dos homens de saber, não porque soubesse mais do que eles,
mas porque não julgava saber o que não conhecia. Sócrates, examinando os homens mais
sábios, confrontando-os com suas opiniões, concluiu que ignoravam a verdade sem o saber.
A posição que assume diante de seus contemporâneos alimenta o descontentamento de
homens ilustres que não suportam a sua atividade investigativa, como os pais dos jovens
aristocratas que estavam apreensivos com a exposição dos filhos à presença do filósofo,
sobretudo porque aprendiam e acabavam praticando o método dialético, analisando por seu
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lado a validade do conhecimento dos outros, como também a natureza da vida das pessoas.
Sócrates não pode ser acusado de impiedade, nem de corrupção da juventude aristocrática,
pois dedica seu pensamento a mostrar o sentido do oráculo de Delfos: "O mais sábio de
vós, ó mortais, é aquele que, como Sócrates, reconheceu que o seu saber é, na verdade,
inteiramente desprovido de valor" (23b). A missão atribuída a Sócrates pelo oráculo de
Apolo se destina a demonstrar que o conhecimento do homem é de escasso valor, que o
filósofo é mais um homem que não sabe como as coisas são na realidade, mas que tem por
função estimular, persuadir e censurar cada habitante da cidade que se preocupa somente
com as riquezas e glórias materiais. O compromisso conscientemente aceito de viver
filosofando, examinando o conhecimento, cuidando da formação do espírito exige que
Sócrates seja o defensor incansável da superação das opiniões imediatas. Como quem
cumpre tão diligentemente a vontade divina pode ser acusado de não crer em deuses? Como
quem investiga os domínios do ser e do parecer preocupado com a virtude moral pode ser
acusado de corromper a juventude ateniense? Como quem não dispunha de soldo para o
pagamento de uma multa pela conservação de sua própria vida pode ser acusado de
transformar a atividade filosófica em negócio de enriquecimento pessoal?
Ora, que eu sou realmente um homem dado pelo deus à cidade, podeis verificá-lo pelo
seguinte: num plano puramente humano não seria compreensível que eu tivesse descurado
todos os meus interesses pessoais, suportando já há tantos anos as conseqüências desta
atitude, para me dedicar exclusivamente a vós, aproximando-me de cada um em particular,
como um pai ou um irmão mais velho, e persuadindo-o a ocupar-se da virtude (31a-b).
Diante do tribunal que oscila entre correntes antagônicas Sócrates tem plena
consciência de que a causa de sua ruína virá de um grupo de pessoas que se sente ameaçado
quando confrontado com a natureza subversiva do método dialético. Sócrates, no entanto,
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não está disposto a fazer e dizer tudo o que for necessário para escapar à condenação que se
torna evidente a cada manifestação do tribunal, de forma que não apela nem para a
compaixão dos juízes, nem para a eloqüência da oratória e considera somente o que é
conveniente a quem se distingue por alguma coisa da maioria dos homens. A cena do
tribunal apresenta Sócrates como um homem que caminha pela cidade, interrogando,
analisando e refutando as opiniões; identificando, examinando e interpretando o que cada
crença esconde por trás da aparência enganadora; convivendo com a indiferença das
pessoas que passam a vida dormindo e reagem com violência se acordadas de seu sono. A
defesa de Sócrates tem o mérito de se fundamentar em fatos concretos, que são analisados
pontual e objetivamente. Sua morte aparece no processo de julgamento requerido pela
acusação do tribunal ateniense como a conseqüência natural de uma vida inteiramente
consagrada à atividade filosófica. Platão evita desenvolver um ponto espinhoso da acusação
que envolve a prática de impiedade, referente às investigações dos fenômenos celestes e
subterrâneos realizados por Sócrates, que se contrapõem à interpretação mitológica da
natureza do universo. A acusação do tribunal não se deve tanto à investigação do oráculo de
Delfos, quanto à afirmação de que os deuses não existem realmente, implícita na idéia de
que "o Sol é uma pedra e a Lua uma terra" (26d). Embora tenha abandonado as
investigações astronômicas, Sócrates não se livrou da acusação de exercer uma atividade
prejudicial à ordem da cidade. A transformação da representação do universo acompanha a
evolução do pensamento, por isso o conflito de perspectivas que divide a adesão dos
concorrentes só pode ser compreendido à luz da transformação dos fundamentos que
definem a natureza das coisas. Embora Sócrates tenha negado as acusações que lhe foram
imputadas por seus antagonistas, a verdade é que a sentença do tribunal determinou que o
filósofo fosse condenado à morte por envenenamento com cicuta. Como um pesadelo
50
recorrente, a história retorna com Giordano Bruno. A perseguição da inquisição ao filósofo
italiano se estendeu por sete longos anos durante os quais Bruno esteve no cárcere acusado
de heresia. Como não renunciou às suas idéias sobre a natureza do universo, Bruno
acreditava que o universo se desdobrava em séries infinitas de sistemas planetários, foi
queimado em 1600, na Praça de Fiori em Roma. Se Galileu Galilei não tivesse cultivado a
virtude da prudência no processo inquisitorial, teria conhecido o mesmo gesto de
silenciamento. A ruptura substancial com o fechamento sistemático em cujo interior a
ordem estabelece uma hierarquia dominante não disponibiliza um espaço próprio de
imediato. Quem vai além do conhecido passa por uma experiência extrema cuja localização
somente pode acontecer retrospectivamente. Foucault dirá em entrevista a Connaissance
des hommes em 1966 que o filósofo não tem uma função específica na sociedade. O esforço
por situar seu pensamento em relação ao movimento atual do grupo pressupõe deformações
profundas em suas hipóteses mais inovadoras. Anos depois, falando ao Le monde em 1980,
Foucault apresentará uma definição da filosofia em cuja base floresce o pensamento
reflexivo livre do dogmatismo das idéias:
– O que é a filosofia senão uma maneira de refletir, não exatamente sobre o que é verdadeiro
e sobre o que é falso, mas sobre nossa relação com a verdade? Lamenta-se às vezes que não
haja filosofia dominante na França. Tanto melhor. Nenhuma filosofia soberana, é verdade,
mas uma filosofia, ou melhor, a filosofia em atividade. É filosofia o movimento pelo qual,
não sem esforços, hesitações, sonhos e ilusões, nos separamos daquilo que é adquirido como
verdadeiro, e buscamos outras regras de jogo. É filosofia o deslocamento e a transformação
dos parâmetros de pensamento, a modificação dos valores recebidos e todo o trabalho que se
faz para pensar de outra maneira, para fazer outra coisa, para tornar-se diferente do que se é.
Desse ponto de vista, os 30 últimos anos foram um período de intensa atividade filosófica.
A interferência entre a análise, a pesquisa, a crítica sábia ou teórica e as mudanças no
comportamento, na conduta real das pessoas, em sua maneira de ser, em sua relação consigo
mesmas e com os outros foi constante e considerável (2000, p. 305-306).
A literatura enquanto forma de conhecimento se arrisca na procura da verdade.
Ciência mascarada, filosofia prestidigitadora, a literatura é movida pela vontade de saber. A
51
proposição de questões sem resposta definitiva não é privilégio de um saber específico,
uma vez que a reflexão sobre a procura da verdade que marca a história na singularidade de
seus agentes também movimenta as construções imaginárias da literatura. No esforço de
realizar uma forma de reflexão menos impositiva, a literatura procura afastar-se do método
de reflexão da ciência ou mesmo da filosofia positivas. A forma literária de reflexão não
ignora a transformação das condições de produção de um evento, das manifestações do
imaginário na identificação dos fenômenos, das contingências específicas da vontade de
saber. O recuo e avanço de uma ciência que investe na revisão constante de seus
postulados, a reformulação e redistribuição das articulações de uma filosofia que modifica
sua maneira de perceber o mundo, como a alternância e disposição de perspectivas
reflexivas numa forma literária, mostram que uma parcela de não-saber não pode ser
eliminada do próprio saber. As obras se sucedem na dispersão do saber no interior do
conhecimento enquanto o desconhecido alimenta o fluxo ininterrupto da vontade de saber.
A possibilidade de invencionar continuamente e a exploração de sentidos concorrentes
ocupam o centro de interesse da literatura que mais se desvia da autoridade da tradição. O
que ocorre sempre que não se limita apenas a investigar os sentidos das relações
conhecidas, mas também quando se debruça sobre a formação de estruturas simbólicas
aptas a perscrutar o que ainda não dispõe de parâmetros para ser avaliado.
Contrariando a mania racional de situar cada coisa em seu lugar apropriado, a
reinvenção contínua da literatura, presente na aparição de cada obra singular, faz com que a
forma literária participe de metamorfoses verificadas em diversos segmentos da natureza. O
desejo de assinalar um mundo próprio em que se possa movimentar num ritmo
incomensurável incita a formação do que lhe é necessário. Certamente a perspectiva
adotada na forma imaginária não assegura o contato com realidades que não cedam ao
52
princípio de incerteza, contudo a desconfiança generalizada dos processos sociais que se
naturalizam no interior dos sistemas de sentido amplia os achados da dúvida especulativa,
empenhada em investigar o que se dissolve em cada confronto com o mundo conhecido. A
forma literária se reveste de perspectivas num espaço de transição para um lugar
indeterminado. O processo se intensifica à medida que a literatura se surpreende com a
normalidade dos padrões e se permite pensar os princípios contraditórios da natureza. O
paradoxo existe para que se possa aproximar do contraste entre os conflitos. A metáfora
adeja sobre as conexões mais sutis entre os homens e as coisas. A imagem traduz em
matizes temperados a policromia das coisas que aparecem ante o olhar inquiridor dos
homens. Parece que a literatura, sendo por necessidade uma forma de conhecimento,
sempre se encontrou em contradição com as determinações de seu tempo, onde convive
com as demandas que exploram a tensão constitutiva dos sistemas de sentido que governam
a vida. Como se envolve com a dúvida diária dos que não dispõem de um lugar apropriado
no mundo, alcança o conhecimento das coisas que resistem à determinação definitiva da
natureza.
A literatura se contrapõe à vontade de verdade que restringe o campo de atuação da
vontade de saber quando ultrapassa os limites das convicções que não querem ser
contrariadas. Interessa à literatura ir além do estabelecido na cultura hegemônica para
disponibilizar uma forma imaginária que possibilite a reflexão sobre realidades que não
convivem tranqüilamente com a autoridade da tradição. Quando a literatura recompõe os
elementos dos sistemas de sentido na forma imaginária, procurando reconfigurá-los de
maneira a revesti-los de determinações específicas, colide necessariamente com as linhas de
força da ordem cultural, onde homens e coisas protagonizam a representação de um
combate. A história de repente vira estória na forma imaginária. O desejo da estória
53
ultrapassa a designação do referente compartilhado através do padrão de sentido dominante.
Certos valores da cultura que restringem o horizonte da vontade de saber são rechaçados
para se afirmarem outras formas de conhecimento que permanecem potencializadas à
espera de possível realização. Para relacionar-se com essa forma plástica capaz de criar
seus próprios valores, é necessário participar de uma realidade com a qual se pode ou não
identificar. O mundo imaginado, convencional por natureza, não é uma realidade imutável.
Ao contrário do conhecimento objetivo, percebido clara e distintamente pelo intelecto
racional de um sujeito que pensa, o domínio da verdade na literatura é percebido como um
espaço de indeterminação. O escritor João Guimarães Rosa revela algumas pistas da forma
literária quando esta se confronta com o sentido das coisas. Para quem questiona o homem
no plano de sua relação afetiva com a linguagem, "A estória não quer ser história. A estória,
em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à
anedota" (2001, p. 29). A anedota, pela etimologia que apresenta e para a finalidade que é
aplicada, requer um certo ineditismo em sua formulação. Definições do saber ainda não
conhecidas podem ampliar os horizontes da lógica formal, propondo novos sentidos para as
definições do pensamento, simultaneamente a reflexões excêntricas aos sistemas de sentido
dominantes. A seqüência de operações poéticas deve recusar-se a permanecer sitiada por
uma lógica que aprisiona e imobiliza a sensibilidade capaz de plasmar planos alternativos
para novos sistemas de pensamento. Se ainda existem formas de oposição que resistem à
livre movimentação da literatura, é porque sua vontade de saber ainda não foi
suficientemente compreendida, ou porque suas escolhas teóricas são consideradas
obstáculos ao controle da lógica formal. A literatura busca, como a anedota, se aproximar
do não-senso, que reflete, por força de sua própria natureza, a estranha interferência de
sentidos que se contrariam. Em Guimarães Rosa "A vida também é para ser lida. Não
54
literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas"
(2001, p. 30). Logo veremos como a ressalva platônica quanto às construções imaginárias
pode ser contra-atacada em suas formulações mais fundamentais.
Mais do que resposta a uma série de perguntas, a literatura é uma forma de
conhecimento que se estende ao longo de uma interrogação potencializada. Se o próprio
sujeito com todas as suas indecisões convive com o silêncio indizível de experiências que
não compreende inteiramente, não podendo eliminá-lo de suas relações diárias mesmo que
se empenhe com o extremo esforço que a tarefa exige, por que a literatura deveria dar uma
resposta final aos impasses da vontade de saber? A literatura não se compraz com os
pressupostos de uma verdade, porque parte do princípio de que para muita coisa importante
ainda falta um nome, logo acaba sendo uma forma habilitada a questionar a identidade
uniforme, a reificação do modo de produção, a naturalização do processo civilizatório...
Incerteza quanto à realidade das coisas, desconfiança do pensar claro e distinto cartesiano,
desconhecer-se para não acolher as primeiras hipóteses, mais do que uma dúvida metódica,
constituem uma posição frente ao mundo. A literatura pode ser um questionamento intenso
das significações fechadas em si mesmas quando apresenta as condições necessárias para
que os sistemas de sentido se confrontem com as inscrições que recebem no processo
civilizatório. A tradição cultural tende a confundir seus monumentos com verdades
imutáveis, como se não houvesse uma fantasia de naturalidade nessa forma de idolatria.
Quem entra em contato com a literatura, como o lendário cavaleiro Dom Quixote que
subverte a hierarquia tradicional entre a realidade e a ficção, dificilmente deixa o seu
campo de força sem nenhum assinalamento. A importância da literatura reside, portanto, na
singularidade com que viabiliza cada disposição de objetos que relaciona, assim pode
55
tornar-se mais verdadeira que muitos paladinos da verdade, pois configura novos modelos,
esquemas e escalas que servem de paradigma para a movimentação no mundo dos seres.
Quando apresento certas considerações acerca da forma literária, tenho por referente
estruturas simbólicas determinadas. As formulações tentam plasmar o modo de ser diverso
da literatura que adere à aventura do pensamento na procura da verdade sem simplesmente
assimilar o novo ao antigo como se quisesse desqualificar a manifestação da diferença. O
ímpeto de exploração entra em contato com realidades contraditórias que resistem à
determinação definitiva, sobretudo porque participam de processos que não permitem a
apreensão sumária de seus procedimentos. A conseqüência imediata desse estado de coisas
é o estímulo crescente de uma desconfiança generalizada em relação ao livre querer de uma
vontade subjetiva que se fundamenta somente na razão objetiva. Afastando-se
progressivamente de uma escrita que fortalece a confiança na ordem disposta no mundo
racionalmente organizado, a literatura vislumbra nesse deslocamento o conflito que subsiste
no sistema da verdade uniforme que não é capaz de assegurar por muito tempo a
permanência do sujeito numa ordem estável de valores. Quando se perde a proteção dos
guardiões do estado de estabilidade, não se pode mais prescindir das relações com uma
realidade que está em permanente movimento. A literatura não é um reflexo especular do
mundo objetivo que dá suporte à sua gênese; ao contrário, pode ser definida, propõe
Wolfgang Iser na Teoria da ficção, como uma "ficção explorativa" que se apropria da
realidade sem procurar determiná-la numa ordem integrada de dados objetivos, como faz a
antropologia cultural que utiliza a "ficção explicativa" para definir as implicações pontuais
de um acontecimento concreto disponibilizado na formação histórica da cultura. "Ficção"
em ambos os casos significa "algo feito", "algo moldado" – este é o sentido etimológico de
fictio – e não algo falso, irreal, uma simples experiência como se fosse (Iser, 1999, p. 152).
56
Há diferenças sensíveis entre os dois usos criativos do imaginário na descoberta das coisas.
A ficção explorativa, ao transgredir a realidade com seus sistemas de sentido determinados,
possibilita o trabalho constitutivo da imaginação como força motriz que impulsiona a
emergência de algo desconhecido até então. A ficção explicativa, ao interpretar o processo
civilizatório, se limita a compreender o que está antecipadamente realizado na formação
cultural (Iser, 1999, p. 169). O poder mobilizador da ficção explorativa transporta o homem
para além de si mesmo, o que equivale a dizer para além do que está determinado; já a
ficção explicativa restringe por necessidade a emergência de novos esquemas de
formalização da realidade existencial, na medida em que se detém diante do conhecimento
armazenado no processo civilizatório. Como a experiência estética explora sentidos
indeterminados que demandam uma investigação atenta às suas inflexões mais
desconhecidas, torna-se necessário elaborar uma linguagem que trate de outra forma os
refugos do mundo objetivo. O refinamento no uso da linguagem é condição sine qua non
para quem deseja escapar do círculo impositivo; da mesma forma a imaginação, a reflexão,
o pensamento precisam redimensionar os sentidos, reagrupá-los e reconcertá-los numa
lógica onde falte determinação, como fazem os escritores que imaginam o que não vêem.
Se a entrada na cultura assinala, por um lado, o progressivo estreitamento da ficção
explorativa; por outro lado, as controvérsias existentes no interior da cultura impulsionam a
atividade de esvaziamento da natureza.
A ciência, a filosofia e a literatura, se consideram o mundo como um problema
indeterminado, se aproximam do núcleo emblemático da existência. Para acompanharem os
desdobramentos da vontade de saber, precisam dialogar com as correntes subterrâneas de
hesitação que circulam pela realidade desconhecida. Assim, distâncias, mesmo que grandes
demais, podem deixar de ser espaços intransponíveis; metas, localizadas em regiões a
57
centenas de milhas, podem tornar-se acessíveis; dúvidas, ainda que desconcertantes, podem
agregar novas aquisições. A única arma que parece ser eficaz contra a vontade de verdade é
a dúvida hiperbólica da vontade de saber que amplia o horizonte da consciência. Se a
controvérsia que nasce com a procura da verdade esvazia as primeiras hipóteses de um
sentido determinado, a natureza oscilante readquire seu espaço de direito na ordem da vida.
Ante a precariedade da existência que não se revela senão indecididamente, reter o mínimo
de sentido é uma grande aquisição. Uma saída que não está imune às situações extremas, às
escolhas arriscadas, às sedições da ordem constituída.
A literatura não desconhece os acontecimentos que formam a vida, principalmente
não desconhece as suas experiências mais extremas. Não por acaso costuma acreditar que a
solução para certos conflitos resida precisamente em conduzir os acontecimentos para um
ponto vertiginoso. O extremo é o momento em que os acontecimentos mais contundentes
são situados no auge dos relacionamentos mais críticos. Assim como o homem é uma
criatura incompleta e inacabada, se contemplado do ponto de vista de sua indeterminação
essencial, o momento decisivo do desenvolvimento humano é permanente. Somente quem
convive com um estado de tensão inextirpável, ou é capaz de suportar ainda que
transitoriamente a revolta das tempestades mais violentas, pode penetrar no espaço
vertiginoso das experiências que permanecem indeterminadas. A palavra ficcional desperta
mundos e seres estranhos nesse espaço de indefinições. O interesse que a literatura
demonstra pelo desconhecido se encontra livre das determinações impositivas da verdade.
Ao contrário das investidas que causam a progressiva reificação do que é saudado como
permanente e necessário, sua vontade de saber libera a visão dos esquemas consagrados de
interpretação da vida e avança na formação de novos valores sem se render às explicações
fáceis que acolhem as primeiras causas que se apresentam. A convivência com a dúvida
58
conflitiva possibilita o conhecimento de uma realidade tão contraditória que não é solidária
com a verdade que se funda na tradição, na convenção, no bom senso legitimado pelo
tempo e pelo esquecimento inevitável que se anuncia e se transmite a cada geração.
Bernardo Carvalho freqüentemente se aventura em seus romances na demanda de
mundos duplamente nomeados, de sentidos que se bifurcam indefinidamente, de situações
concretas que sofrem o impacto da descontinuidade dos acontecimentos. O deslocamento
agencia o contato interno com a veemência de um mundo paradoxal, imagem enviesada da
vida que não se deixa conter na identidade substancial. Narradores, histórias, personagens,
todos percorrem terras diversas, conhecem realidades estranhas, ousam apresentar-se ao
desconhecido. A lógica parece dizer que a separação da natureza transitiva, do pensamento
imaginativo, da dúvida especulativa coloca em xeque a eficácia do conhecimento. É
essencial que a vontade de saber compartilhe do entusiasmo poético pelo desconhecido.
Sem se esquecer de que o homem não é composto apenas de intelecto, Bernardo Carvalho
observa o mundo na interpenetração entre o dado objetivo e a repercussão subjetiva, para
alcançar uma realidade onde as oposições dos contrários não se excluem absolutamente.
Para o autor a literatura deve recriar constantemente o mundo, não deve jamais contentar-se
em perpetuar o que já é conhecido, já que não basta simplesmente observar e descrever a
realidade para poder interferir no crescimento humano e expandir os limites da realidade
conhecida em direção ao desconhecido. O desejo de descobrir, a busca permanente, como a
força de imaginar, assinalam a literatura de exceção. O mundo é suscetível de tantos
sentidos contraditórios ou mesmo completamente inconciliáveis que torna a experiência
humana altamente instável. Embora a meta da vontade de saber seja descobrir a verdade
encoberta pelas aparências ilusórias da realidade, a demanda por alcançá-la precisa contar
sempre com uma forte resistência que apresenta quando se desvia da determinação. Parece
59
que a busca deve andar sempre em descompasso quando se trata de definir a verdade.
Bernardo Carvalho explora certos problemas cuja solução se encontra em estado de
suspensão fora do circuito da convenção e da convicção naturais. “A insatisfação com o
que existe é o único caminho para uma literatura de verdade” (Carvalho, 2005, p. 195). A
verdade da literatura se assemelha à pergunta aniquiladora da esfinge cujo enigma desafia o
impulso de exploração do desconhecido. Na academia dos ruminantes os escritores
escrevem a literatura mais inquietante em meio ao gosto de especular idéias.
60
IV OS DISFARCES DA MIMESE
4.1 PLATÃO CONTRA HOMERO
A alegoria da caverna que abre o Livro VII da República representa os homens
encerrados no interior de uma morada subterrânea. Desde a infância têm os homens o
pescoço e as pernas presos em cadeias que os impedem de executar qualquer movimento
com o corpo. Uma fogueira acesa no exterior da caverna projeta uma luz difusa em seu
interior sombrio. Entre a fogueira e os prisioneiros alonga-se um caminho escarpado em
que foi construído um pequeno muro de proteção. Homens, alguns em silêncio, outros em
conversa, seguem esse caminho com estatuetas de madeira e pedra que se elevam acima do
muro de proteção. Os prisioneiros apenas vêem as sombras de si mesmos e das estatuetas
de homens e animais que são projetadas na parede que lhes fica em frente. Se pudessem
conversar uns com os outros, falariam de cada sombra como se fosse um objeto real. Se
pudessem ouvir a conversa dos homens que sobem o caminho escarpado, imaginariam que
as palavras articuladas eram pronunciadas pelas sombras das estatuetas que carregam
consigo. Se um dos prisioneiros pudesse livrar-se das correntes que impedem seu
movimento e pudesse caminhar para fora da caverna em direção à luz que emana da
fogueira, observaria que nada havia de verdadeiro nas sombras que vira durante toda a vida,
ou antes julgaria que essas sombras eram bem mais verdadeiras que as estatuetas que agora
lhe são mostradas. A mudança de posição que se realiza na passagem da opacidade densa
para a luminosidade intensa levaria inicialmente ao ofuscamento da visão do prisioneiro.
Para que o prisioneiro reconhecesse a nova realidade como verdadeira, seria necessário que
transcorresse um certo intervalo de tempo. Porém, uma vez de posse do conhecimento da
61
verdade, lamentaria a sorte do estado anterior, em que vivia confinado entre correntes num
mundo de sombras e ilusões. Caso o prisioneiro retornasse à caverna para libertar os
companheiros, após ter ascendido à superfície e ter contemplado o mundo superior, ficaria
novamente com os olhos cegos pela escuridão do antro profundo. Ao tentar libertar os
prisioneiros da prisão subterrânea, revelando o que a superfície solar tem de mais
verdadeiro, seria alvo da zombaria dos antigos companheiros, se não fosse de imediato
morto por sua impertinência.
A alegoria da caverna descreve o estado da natureza humana em relação ao
conhecimento da verdade. Em seu plano geral a figuração demonstra a insidiosa fonte de
ilusões que forma as imagens da realidade na perspectiva humana. Os prisioneiros
acorrentados no interior da caverna vivem inconscientes da verdade entre as sombras que
compõem integralmente o conhecimento da realidade. Quando um dos prisioneiros
consegue livrar-se das correntes que o impedem desde a infância de contemplar o fogo que
ilumina a caverna, é inevitável que seu espírito permaneça agitado ante o choque de
realidades contraditórias até que seus olhos possam habituar-se às definições de sua
natureza. A ascensão do antro hadésico em direção à superfície hélica arrasta o prisioneiro
na confusão de sentidos. À medida que os olhos se elevam à contemplação do mais
luminoso dos astros, o prisioneiro pode passar das sombras dos objetos artificiais às
sombras dos objetos reais, da luz que se distribui na superfície ao astro que governa o
mundo superior. Platão estabelece a analogia de cada elemento da alegoria com o mundo
dos homens. O antro subterrâneo é o mundo visível. A luz da fogueira é a força do Sol. As
sombras correspondem às imagens sensíveis. O Sol é no mundo visível o mesmo que a
idéia do Bem é no mundo inteligível. O prisioneiro que sobe ao mundo superior é a alma
que conhece a verdade (517b-c). A procura pelo conhecimento da verdade passa
62
necessariamente pelo conhecimento da idéia do Bem. Quanto mais o sujeito do
conhecimento se aproxima do objeto do conhecimento, mais se difere do homem que se
confunde entre sombras e opiniões. O encontro com a idéia do Bem possibilita o acesso à
forma do que se mantém sempre do mesmo modo.3
A caverna representa a negatividade do mundo inferior. O antro subterrâneo, como
o Hades e o Inferno, se localiza precisamente no interior obscuro da terra. Abaixo da
superfície terrestre sucedem as ações mais terríveis entre a dor e o engano. Todos os
criminosos que se recusam a cultivar a virtude são aí precipitados para expiar a culpa de
seus crimes. O distanciamento da verdade e da justiça desencadeia a entrada nesse mundo
de fantasmas. A morada subterrânea ocupa uma posição antitética em relação à superfície
solar, da mesma forma que a Terra obscura se opõe ao Sol luminoso. A cosmologia
platônica confere ao universo uma estrutura hierárquica, na qual a Terra ocupa uma posição
singularmente inferior e desprezível em relação ao Sol. A estrela brilhante é um centro de
perfeição que sinaliza o caminho que conduz à verdade absoluta. A crença dos antigos de
que o Sol era habitado por seres mais perfeitos que os homens se fundamenta na convicção
de que a Terra era um sítio destinado à expiação das faltas cometidas em outra vida.
A alegoria da parelha alada narrada no Fedro descreve a circulação das almas entre
dois mundos separados por realidades que se contradizem profundamente. Platão visualiza
3
A propósito dessa questão, cf. o sistema de equivalências proposto por James Adam, a partir de uma série de
analogias entre o Sol e o Bem (apud Pereira, 2001, p. 308).
Mundo visível
=
Mundo inteligível
(1) Sol
=
Idéia do Bem
(2) Luz
=
Verdade
(3) Objetos da visão (cores)
=
Objetos do conhecimento (idéias)
(4) Sujeito que vê
=
Sujeito cognoscente
(5) Órgão da visão (olhos)
=
Órgão do conhecimento (nous)
(6) Faculdade da visão (ops)
=
Faculdade da razão (nous)
(7) Exercício da visão (ops, horan) =
Exercício da razão (noesis, gnosis, episteme)
(8) Aptidão para ver
=
Aptidão para conhecer
63
a imagem da alma como um carro puxado por um par de cavalos alados. A alma dos
homens difere da alma dos deuses, porque o cocheiro humano guia cavalos mestiços. Um é
belo, bom e de boa raça, possui um corpo harmonioso, dotado de pureza e sobriedade. O
outro é feio, mau, de aspecto disforme, soberbo e lascivo, somente reconhece a autoridade
que oprime com violência o instinto desmedido. As almas dos imortais, ao contrário, não
conhecem nenhum sofrimento; seus cavalos, ambos puros, não se desviam do sentido de
justiça. Quando se dirigem para contemplar as verdades eternas do outro lado da abóbada
celeste, perfazem um percurso sem nenhuma espécie de acidente. Tudo se passa dentro de
uma ordem estável onde cada elemento ocupa uma posição designada antecipadamente. Os
carros sobem por um caminho escarpado até o ponto mais elevado da abóbada celeste, aí se
mantêm e são impelidos por um movimento circular, nesse momento podem contemplar
tudo o que fora da abóbada abarca o horizonte das idéias eternas. O cocheiro dos corcéis
mestiços experimenta uma realidade bem diferente no trajeto que percorre. Perturbadas
pelos corcéis dos carros, as almas humanas apenas vislumbram as idéias eternas,
conseguem ver algumas formas essenciais, mas não alcançam muitos aspectos. Quando
escalam o céu no encalço do cortejo dos deuses, empurram-se, derrubam-se, chocam-se
umas nas outras. No tumulto muitas se ferem e têm suas asas enfraquecidas por se
alimentarem anteriormente de impurezas na realidade, o que faz com que caiam à Terra e
sejam condenadas à simples opinião. As almas que pouco ou nada viram dispõem de
escassas reminiscências. Tomadas pelo esquecimento, não conseguem reconhecer nem
mesmo as cópias do modelo que circulam no mundo sensível. O homem se torna
verdadeiramente perfeito somente quando a alma se apropria das reminiscências e dirige
seu interesse para realidades comedidas e estáveis que constituem realmente um bom
alimento para as asas enfraquecidas na queda (246a a 250c). O elo entre a memória da
64
verdade (aletheia) e o esquecimento das idéias (lethe) estabelecido por Platão é retomado
por Plutarco em De defectu oraculorum:
Os mundos não são infinitos, ... não existe apenas um, nem cinco, mas cento e oitenta e três.
Reúnem-se em forma de triângulo, à razão de sessenta por lado; os três que restam estão
colocados cada um em um ângulo. Os mundos vizinhos encostam, portanto, uns nos outros,
no curso de suas revoluções, como numa dança. A superfície interior do triângulo serve a
todos estes mundos, como sede comum, e se chama Planície de Aletheia. É aí que jazem
imóveis os princípios, as formas, os modelos daquilo que foi e de tudo que será. Em torno
destes princípios, encontra-se a eternidade, da qual o tempo foge como uma onda, dirigindose para os mundos. Tudo isso pode ser visto e contemplado uma vez, a cada dez mil anos,
pelas almas humanas, caso estas tenham vivido bem; e as melhores iniciações desta terra são
apenas um reflexo desta iniciação e desta revelação. As conversas filosóficas têm como
razão de ser o fato de nos recobrar a memória dos belos espetáculos de lá, ou, senão, de
nada servem (apud Detienne, 1988, p. 64).
Quaisquer que sejam os termos empregados na comparação, mundo visível/mundo
inteligível, essência/aparência, exterior celeste/interior terrestre, os homens sempre se
encontram afastados três graus da verdade. Na caverna obscura acreditam que as sombras
das figuras artificiais são o que a realidade apresenta de mais verdadeiro. Na superfície
solar acolhem as imagens dos seres como representantes da verdadeira realidade.4
Platão espera que o homem contemple o ser fundamental de todas as coisas, o que
se conserva sempre do mesmo modo, pois rejeita que a verdade do ser esteja em qualquer
substância que se transforme submetida às leis do tempo. A verdade do ser é imutável,
intemporal e universal. Somente pode fazer parte da constituição das idéias que encerram
em si mesmas a realidade objetiva desde que são concebidas. As idéias abrangem todos os
seres vivos, toda espécie de artefato, tudo o que possui uma existência real. Como
correspondem à essência invisível, somente podem ser alcançadas no pensamento racional.
4
A região terrestre e a região celeste conservam a oposição diferencial no neoplatonismo de Stellatus
Palingenius. "... cabe crer que Colônias magníficas povoam esses lugares encantadores e que a Felicidade
delas é proporcional à excelência dos Lugares que eles [seus habitantes] habitam, e confessar com sinceridade
que a Terra é a última das Habitações, ainda que muito boa para os Homens e as Bestas. Mas o Ar acima das
Nuvens é um Céu feliz e sereno. É ali que reina uma Paz eterna; é lá que brilha a Luz do mais belo dia; lá está
a morada Real dos Deuses que nossos olhos corpóreos não podem perceber" (apud Koyré, 1979, p. 34).
65
O mundo das imagens com que convivemos está afastado de sua forma original. A
percepção sensível é tão instável quanto a realidade dos objetos de que participa, devendo
ser abandonada para que o pensamento conheça o que permanece e se opõe à mudança. O
conceito platônico de verdade compreende a determinação “eidética” dos seres, adjetivo
composto a partir de eidos, que significa "forma", "idéia", "gênero". O sentido de "idéia"
não abrange o significado corrente do termo na língua grega. Platão utiliza o verbo idein
(ver) para designar a visão que contempla o ser invisível à percepção sensível. Na
linguagem comum eidos significa o aspecto sob o qual uma coisa visível se oferece à
percepção sensível na forma de uma sensação. Platão, no entanto, denomina com eidos algo
completamente diferente do sensível, que nunca será alcançado com os olhos do corpo. Daí
o termo theoria designar a contemplação da verdade que não é múltipla e variável como as
imagens, paixões e opiniões que se contradizem. A ontologia eidética subordina o ser à
impressão de um sinete sobre cada coisa constituída. O modelo constitui o sinete, a cunha, a
forma, enquanto o plasma recebe a marca, o sinal, a matriz. A impressão adequada depende
do perfeito acordo entre a matéria a ser moldada e o conteúdo a ser assinalado. Os seres são
bem ou mal formados no ajustamento mais ou menos eficaz ao molde da impressão. As
idéias constituem o modelo divino que deve ser buscado incessantemente na existência dos
seres. Nem mesmo Deus, que é o autor natural das idéias matriciais, se esquiva da
necessidade de reproduzi-las no ato da criação do universo.
Da mesma forma que Platão descreve a ascensão da caverna em direção à superfície
solar (532b-c), ele oferece uma saída para os que querem conhecer as idéias em si mesmas.
O estudo preliminar das ciências do cálculo é um requisito essencial à realização dessa
tarefa. A aritmética proporciona o conhecimento da unidade dos seres e elimina a
contradição de sua constituição interna. O número é a categoria por excelência da unidade
66
que não comporta nenhuma realidade que não seja passível de determinação. Um objeto
apreendido em sua unidade não pode ser ao mesmo tempo uma e outra coisa. Se a visão da
realidade apresenta um mundo desordenado, de modo que a unidade se confunda com a
multiplicidade, o cálculo pode restituir a unidade ao objeto do conhecimento. O número
interessa apenas enquanto representação racional do pensamento abstrato. Ao contrário dos
comerciantes que vêem os números como suportes das trocas comerciais diárias, Platão
deseja conhecer a natureza dos números para poder separar a unidade da multiplicidade. Ao
determinar qual é a natureza dos números, a razão se volta para a contemplação da unidade.
Enquanto a aritmética se aproxima da unidade de cada coisa existente, a geometria elimina
a participação dos acidentes na definição da superfície e das figuras que podem ocupá-la. O
objeto de conhecimento dessa ciência é a justa medida do plano bidimensional, logo pode
elevar o olhar em direção à descoberta do que não sofre nenhum processo de degradação. A
astronomia, que segue o estudo da estereometria, cujo objeto é o plano tridimensional,
estuda os corpos sólidos em movimento. O estudo não deve limitar-se ao reconhecimento
dos fenômenos que se passam com os astros no espaço; define-se antes pela transcendência
do campo sensível que visa conhecer o equivalente conceitual de tudo o que existe. A
astronomia leva o pensamento a conceber o movimento puro dos astros invisíveis,
conferindo-lhe uma realidade superior à imitação sensível que pode ser visualizada. A
harmonia, quinta ciência do currículo platônico, tem seu domínio delimitado. Em
conformidade com o pensamento dos pitagóricos, Platão admite que a música reproduz em
alguns casos o acorde harmônico do universo e que é possível aprender com seu
movimento harmônico a conhecer a natureza da realidade que lhe serve de fundamento. O
estudo da harmonia pode identificar os sons harmônicos para poder distingui-los dos que
não o são realmente. As ciências do cálculo, fora da utilidade prática que apresentam,
67
auxiliam na passagem da aparência perecível para a verdade indestrutível. Tais disciplinas
estudam certas grandezas que só têm existência no pensamento, como números perfeitos,
figuras invisíveis, movimentos puros no espaço. Quanto mais afastadas estiverem dos
fenômenos sensíveis, mais próximas estarão da verdade das coisas que somente pode ser
alcançada através da razão (nous), o atributo do espírito que Platão considera superior. A
medida, o número, o peso, enquanto componentes do cálculo matemático positivo,
preservam o conhecimento da multiplicidade contraditória. Assim como as ciências do
cálculo que têm por objeto a realidade objetiva das coisas que são, Platão espera que o
pensamento formado de acordo com sua natureza transcenda as imagens sensíveis, os
hábitos tradicionais, as opiniões instáveis. Platão privilegia as ciências racionais que
servem de modelo natural à pesquisa da verdade, indicando com essa escolha teórica onde
se encontra a origem da concepção da verdade racional e objetiva que se consolidou no
domínio do conhecimento positivo. Algumas páginas do Livro VII da República (521d531e) antecipam o destino da ciência moderna e contemporânea.
Julgo, conclui Sócrates após fazer uma breve apresentação das ciências do cálculo, que o
estudo metódico de todas estas ciências que analisamos, se atingir o que há de comum e
aparentado entre elas e demonstrar as afinidades recíprocas, contribuirá para a finalidade
que pretendemos, e o nosso esforço não será vão; caso contrário, será inútil (531d).
O que foi dito anteriormente constitui apenas o prelúdio da ária que resta por
aprender. As ciências do cálculo encontram seu fim e sua perfeição na ciência dialética. A
dialética procura penetrar a natureza de cada objeto até poder conhecer o que ele é na
realidade. O método dialético torna os homens capazes de interrogar e de responder o mais
sabiamente possível à medida que descortina ante o pensamento uma visão clara e distinta
da verdade. Quem coloca em prática a forma dialética de investigação, abstendo-se em
68
absoluto do uso dos sentidos, se conduz através das sendas da razão à contemplação do bem
absoluto de onde evola toda a verdade. A reflexão dialética parte de um ponto de vista geral
para abandoná-lo quando atingir o conhecimento dos princípios fundamentais. A divisão
dialética parte de hipóteses iniciais, contudo procura demonstrar a pertinência de cada
argumento, refutando as objeções que possam aparecer, ao contrário das ciências do
cálculo, que podem ser mais claras que a opinião, porém são mais obscuras que a dialética
por não prestarem contas de seus pressupostos. A separação introduz uma hierarquia entre
as disciplinas do conhecimento: de um lado, encontram-se a ciência (dialética) e o
entendimento (cálculo), representantes da inteligência (nous); de outro, encontram-se a fé e
a suposição, representantes da opinião (doxa) (534a). É previsível que a inteligência se
relaciona com uma verdade intemporal, uniforme e necessária e que a opinião se dedica a
noções que se transformam conforme a pessoa, o lugar e a época. Platão acredita que a
formação do espírito nos exercícios dialéticos e a conformação do corpo nos exercícios
gímnicos podem atingir a perfeição moral (bondade) e física (beleza). O processo
especulativo que orienta a investida do pensamento em direção ao conhecimento da
natureza de cada coisa constitui uma espécie de progresso dialético. A alegoria da caverna
mostra o caminho que o pensamento deve seguir para se conservar na marcha ascendente.
A libertação das algemas e o voltar-se das sombras para as figurinhas e para a luz e a
ascensão da caverna para o Sol, recorda Sócrates, uma vez lá chegados, a incapacidade que
ainda têm de olhar para os animais e plantas e para a luz do Sol, mas, por outro lado, o
poder contemplar reflexos divinos na água e sombras, de coisas reais, e não, como
anteriormente, sombras de imagens lançadas por uma luz que é, ela mesmo, apenas uma
imagem, comparada com o Sol – são esses os efeitos produzidos por todo este estudo das
ciências que analisamos; elevam a parte mais nobre da alma à contemplação da visão do
mais excelente dos seres, tal como há pouco a parte mais clarividente do corpo se elevava à
contemplação do objeto mais brilhante na região do corpóreo e do visível (532c).
69
Definido o plano geral de estudo, resta saber a quem ele se destina na realidade.
Mais uma vez é necessário empreender uma seleção entre os pretendentes que disputam a
preferência. A adoção das provas eletivas serve para separar os piores dos melhores
concorrentes, somente quem apresentar determinadas qualidades participará de todo o
processo. Para não se desviar do estímulo ao pensamento conceitual, o modelo de educação
visa encontrar pretendentes de boa constituição física e intelectual. Em todas as etapas de
formação dos cidadãos, que compreende inicialmente os exercícios gímnicos e os cálculos
matemáticos e posteriormente as contradições dialéticas, os que permanecerem mais tempo
firmes na lógica do processo de formação do espírito racional devem ser escolhidos para
compor os quadros de direção e defesa da cidade (polis). Cabe aos que possuem certas
qualidades em mais alto grau formular a lei pública (nomos) e instituir a lei privada (ethos).
Cumpre aos guardiões formados dentro do sistema regulamentado obedecer à liderança
política e conservar a ordem na cidade. É forçoso que Platão desenvolva um plano geral de
educação (paideia) para modelar o caráter de excelência (arete). A educação é a maneira
mais eficaz de conduzir os homens ao conhecimento de uma espécie de verdade. O caráter
não se desvia do contorno natural quando é formado segundo o princípio de conservação. A
importância da educação na formação dos homens desde a mais tenra idade faz com que lhe
seja reservado um lugar de relevo na organização da cidade. A educação não deve partilhar
de nenhuma realidade que reconheça valores contrários à conservação do caráter. A
formação de um rei filósofo, por exemplo, se prolonga durante cinqüenta anos, somente
nessa idade atinge-se o nível mais elevado na formação do caráter virtuoso.
Quando tiverem cinqüenta anos, encerra Sócrates a discussão, os que sobreviverem e se
tiverem evidenciado, em tudo e de toda maneira, no trabalho e na ciência, deverão ser já
levados até ao limite, e forçados a inclinar a luz radiosa da alma para a contemplação do Ser
70
que dá luz a todas as coisas. Depois de terem visto o bem em si, usá-lo-ão como paradigma,
para ordenar a cidade, os particulares e a si mesmos, cada um por sua vez, para o resto da
vida, mas consagrando a maior parte dela à filosofia; porém, quando chegar a vez deles,
agüentarão os embates da política, e assumirão cada um deles a chefia do governo, por amor
à cidade, fazendo assim, não porque é bonito, mas porque é necessário. Depois de terem
ensinado continuamente outros assim, para serem como eles, e de os terem deixado como
guardiões da cidade, na vez deles retirar-se-ão para habitar nas Ilhas dos Bem-Aventurados.
A cidade erigir-lhes-á monumentos e sacrifícios públicos, na qualidade de divindades, se a
Pítia o autorizar; caso contrário, de bem-aventurados e divinos (540a-c).
A alegoria da caverna encena um inquérito em que se deve decidir a sorte da
verdade. Platão não tem dúvida de que a verdade possa ser conhecida ao término do
processo dialético. Quando reconhece que os homens vivem num mundo de sombras e
imposturas, é porque acredita que possa suplantar o espectro de ilusões que os envolve.
Platão sabe que os homens não nascem prontos e acabados, caso contrário não haveria por
que dispensar tanto cuidado com a formação do caráter individual, não haveria o risco de
confrontação com o modelo eleito em seu pensamento ao estabelecer a ordem da cidade. O
esforço por purificar a cidade do que considera refugo do sensível se baseia no conceito de
justiça. Cada cidadão deve desempenhar na cidade um ofício específico (tekhne), o único
dever para o qual revela uma disposição natural. Quanto mais os seres são bem constituídos
no processo de formação, tanto menos estão sujeitos a conhecerem a multiplicidade. Vale
mais o que permanece mais tempo dentro da forma que lhe é assinalada, ou que menos se
perturbe em face dos acidentes externos. Cumpre ao filósofo ilustrado na alegoria da
caverna distribuir definitivamente os seres em seus lugares específicos e em suas funções
determinadas. Definir a essência da justiça (dike) é fundamental para atingir a idéia de
verdade que servirá de modelo à divisão dos papéis. A justiça instaura a lei de organização
fundamental da cidade na busca da unidade constitutiva da comunidade (demos). A
organização da cidade depende de que cada um cumpra com seu ofício da forma designada
a fim de que a cidade não conheça nenhum princípio de desordem. A justiça assegura que
71
cada um se atenha à especificação de que cada técnica seja realizada por aquele cuja
natureza o conduz a exercer um ofício determinado. A justiça pode existir onde há
ajustamento ao imperativo do conceito que tenta definir uma ordem funcional. A ordem
pode prevalecer onde há identidade regulada por propriedades individuais. Assim como a
idéia é uma realidade ordenada na unidade indivisível, cada ofício específico, se o for de
verdade, é completo em si mesmo. Dessa forma, a medicina, a política, a guerra, entre
outros ofícios, governam e dominam aqueles a quem pertencem por natureza, pois é
impossível que uma única pessoa exerça na perfeição muitas técnicas simultaneamente.
Como na hierarquia das funções o filósofo é o que está mais próximo da verdade, podendo
alcançar a essência de cada coisa até conhecer o que cada coisa é, ele recebe a concessão de
estabelecer a natureza de cada ser em sua propriedade individual (ousia) (397e).
Platão desconfia das opiniões, investiga as crenças e suposições, indaga as práticas
sociais, porém em nenhum momento duvida de que possa descobrir a verdade uniforme
como resposta às aporias que desafiam o esforço crítico de análise e síntese do pensamento.
Assim como o sol possibilita a visão clara e distinta dos objetos no mundo visível, a
pesquisa dialética torna viável a entrada no domínio da verdade. A razão deve velar em
nome da verdade, procurando saber de que lado ela está, impedindo que as paixões
conquistem mais território. Conter o despertar das paixões impulsivas e proteger corpo e
alma de sua dança compulsiva são tarefas que merecem todo o cuidado em sua realização.
Quando se trata de conter a vontade das paixões, o excesso de cuidado nunca é excessivo.
Uma multidão de monstros de muitas cabeças que tomam todas as formas se movimenta no
interior dos homens. Todo excesso, toda multiplicidade, toda instabilidade devem ser
contidos. Domá-los, reprimi-los, adestrá-los é fundamental para que o mundo seja
purificado da multiplicidade monstruosa. A multiplicidade acolhe em si elementos de
72
origens diversas, tal como os poetas quando representam animais fantásticos. O
universalismo das idéias se fundamenta na determinação da unidade particular de cada
coisa e não na existência da pluralidade em coisas particulares. Platão reconhece que
existem muitas coisas belas na natureza, mas o que persegue é o belo em si mesmo, o que
lhe interessa não é o que pode ser visto, mas o que pode ser conhecido pelo pensamento.
Eric Havelock questiona a existência transcendental de uma super-realidade metafísica
onde as idéias habitariam como seres do mundo inteligível. A teoria do conhecimento
exposta no Prefácio a Platão se caracteriza essencialmente por definir cada objeto em si
mesmo, abstraindo um conceito intemporal de acontecimentos concretos. O conceito
abstrato é universal, porque não sofre a ação do tempo. O currículo platônico tem por
objetivo o conhecimento de fórmulas, princípios e categorias que permaneçam imutáveis. A
idéia não é um ser espiritual, mas um conceito abstrato definido no pensamento, tem a
forma de um imperativo moral (bondade, justiça, temperança), uma categoria matemática
(ângulo, superfície, dimensão), uma categoria física (movimento, velocidade, volume)
(Havelock, 1996, p. 243). Para estabelecer um sistema de pensamento que defina a essência
de cada coisa, Platão se concentra na caracterização da unidade formal. Permanece assim
afastado da realidade que se encontra para além do conceito que determina o
comportamento do ser enquanto indivíduo e cidadão ajustado ao objeto do conhecimento.
A organização da polis democrática em torno da idéia de utilidade para com o demos
compreende a verdade como uma correção da multiplicidade contraditória e desordenada.
O conceito de verdade não é um artifício lingüístico, nem uma invenção do pensamento,
mas uma realidade que existe por si mesma, por isso pode ser conhecida pela razão.
A vontade de verdade em Platão é realmente infinita, dispõe de força excedente para
atingir o objetivo do currículo; contudo falta encontrar objetos que aceitem a visão da
73
unidade. Não é por acaso que a teoria das idéias não se caracteriza mais pela definição de
conceitos do que pelo método de divisão que consiste em separar o pior do melhor, o
semelhante do dessemelhante, o verdadeiro do falso. A divisão dialética é uma estratégia do
pensamento que permite caminhar das primeiras hipóteses aos primeiros princípios da
realidade. Platão deseja isolar todos os seres que possuem características comuns com o
objeto específico buscado a fim de afastá-lo das misturas impuras da realidade sensível.5
Para desqualificar a existência dos acontecimentos, afirma sua inferioridade em relação aos
conceitos, instaurando nessa escolha teórica uma luta contra a possibilidade de os seres se
afastarem do modelo representado na idéia intemporal. O objetivo do procedimento é impor
um limite à proliferação da multiplicidade que avança por linhas divergentes, é fazer com
que a idéia imutável se imponha como modelo supremo da existência. É preciso
problematizar a suposição de que haja na realidade um outro do determinado, sobretudo
porque a teoria do conhecimento pressupõe que os seres que realmente existem no mundo
estão definitivamente fixados em identidades e funções determinadas, de forma que é
possível reconhecer com precisão o domínio particular de cada um deles. A razão passa
então a controlar os procedimentos do pensamento conceitual devido à determinação
racional que privilegia a conservação da propriedade identitária. A noção de identidade que
acompanha a argumentação da República se define a partir do paradigma da verdade.
Dificilmente a verdade imutável que espera presidir uma ordem estável acolheria em seu
interior múltiplas confrontações identitárias que dispõem de idéias e afetos contraditórios
que não reconhecem a existência da propriedade de cada coisa. A paixão pela seleção dos
5
Gilles Deleuze assinala que "O objetivo da divisão não é, pois, em absoluto, dividir um gênero em espécies,
mas, mais profundamente, selecionar linhagens: distinguir os pretendentes, distinguir o puro e o impuro, o
autêntico e o inautêntico" (2000, p. 260). Não se trata de especificar os elementos de uma série que parece
infinita, mas de autenticar gêneros ou espécies por meio de uma seleção entre pretendentes rivais.
74
pretendentes rivais recorrente nos diálogos platônicos tem por finalidade anular todo
princípio de corrosão da identidade. Os pretendentes são avaliados por meio de uma
comparação com o modelo. Quanto maior for o grau de semelhança com o modelo, maior
será a probabilidade de receberem a aprovação do tribunal.6 Platão identifica o arquétipo
primordial na rede inteligível da verdade ontológica, o modelo serve de fundamento para a
desqualificação de tudo o que escapa a seu campo de assinalamento. Embora a recaída na
fábula mítica cause um certo mal-estar a um filósofo de espírito positivo, como a retomada
do mito das raças de metal no final do Livro III da República, Platão recorre ao modelo da
narrativa mítica, uma vez que o mito pode fornecer o fundamento decisório que a idéia
abstrata não consegue assegurar por si mesma. A dificuldade de estabelecer um conceito
unitário capaz de conter a multiplicidade incessante expõe o limite do platonismo.7
O sistema de hierarquização inclui o controle sobre a matéria e a forma da mimesis.
Platão entende por mimese o conjunto das criações imaginárias que formam o espírito.
Assim, o mito, a música, que reúne a palavra, o canto e a dança, a poesia lírica, épica e
dramática, entre outras formas poéticas, são criações miméticas. O interesse pelas formas
miméticas cobre um amplo espectro de preocupações com a influência das criações
imaginárias na organização da cidade. Platão propõe modelos de controle sobre sua
6
A propósito da divisão dialética, cf. os modelos apresentados no Sofista, no Político e no Fedro.
Para persuadir os membros da polis a permanecerem nas funções que lhes foram designadas, Platão tentará
convencê-los de que foram formados no interior da terra materna. Sendo a terra nutris a fonte da geração, os
chefes políticos e os guardiões militares devem protegê-la sem reservas. Os que nasceram da mesma terra são
necessariamente irmãos, contudo o deus os modelou com naturezas diferentes. Para o governo da cidade,
modelou os da raça de ouro; para guardar a ordem social, formou os da raça de prata; para os demais ofícios,
plasmou os da raça de ferro e bronze. Os governantes devem observar com cuidado a ocorrência de alguma
mistura entre os componentes de cada raça para que a cidade não caia em ruína por causa das impurezas que
entram na constituição do caráter dos homens (414d-415c). O mito das raças de metal é uma variante do mito
das idades do homem contado pela primeira vez por Hesíodo em Os trabalhos e os dias. O autor reconhece a
existência de cinco raças: a raça de ouro, a raça de prata, a raça de bronze, a raça de heróis e a raça de ferro.
Excetuando-se a raça de heróis, a sucessão das raças indica uma progressiva deterioração das relações e da
existência humanas. Passa-se do estado paradisíaco da raça de ouro para o presente de fadiga, miséria, dor,
injustiças e inquietações da raça de ferro em que o autor está inserido (Hesíodo, 2002, p. 29-35).
7
75
produção e circulação em função dos riscos que podem representar para a ordem política.
Os poetas só poderiam abordar temas determinados a partir de um tratamento edificante. O
modelo eleito privilegia a temperança (sophrosyne), a coragem (andreia) e a razão (nous)
em detrimento da desmedida (hybris), do medo (phobos) e da loucura (aphrosyne). Platão
aceita a ativação das fábulas míticas e de outras formas miméticas somente enquanto
permanecerem fiéis aos valores mais excelentes da virtude. Definido o que se deve e como
se deve dizer, a mimesis em geral acaba sendo compreendida como um instrumento de
manutenção da ordem política, correndo o sério risco de abandonar o domínio da poiesis,
para ir habitar o espaço da disciplina formativa. O abafado sistema de representação
mimética enclausurado numa rígida lógica da identidade termina submetendo as criações
imaginárias à declaração da verdade, a ser julgada e afinal proferida pelo filósofo. Compete
à sua reflexão dialética progredir em caminho ascendente até o conhecimento do modelo
teórico em cujo princípio imutável as formas miméticas devem sempre espelhar-se. A
organização da cidade (polis) depende da formação da identidade como modelagem do
caráter (kharacter) à exatidão da idéia (eidos) que serve de modelo à determinação da
propriedade (dike). O caráter é uma forma modelada de fora para dentro por discursos que o
antecedem em existência e lhe servem de matriz originária. A formação das crianças ainda
estava sob o controle das formas miméticas na época de Platão. A cultura grega permanecia
nesse período essencialmente oral, e a poesia era a responsável pela conservação e
transmissão da memória coletiva na celebração do passado ancestral. A poesia oral,
transmitida por poetas, rapsodos e atores, era o principal instrumento de educação e veículo
de conhecimento na formação grega. Havelock tem razão de dizer que o prestígio da poesia
no imaginário cultural da época exigia o confronto com a filosofia para que um novo
sistema de instrução fosse instalado na cidade. A reforma educacional platônica pretende
76
modificar a estrutura educacional existente, substituindo o modelo da poesia oral,
concebido como o representante das opiniões, pelo currículo da academia científica,
caracterizado como o conhecimento dos conceitos. O questionamento da poesia como
forma de conhecimento racional expõe o confronto entre duas disposições mentais
circunscritas a realidades diferentes (Havelock, 1996, p. 37-47). Se a poesia oral é uma
espécie de enciclopédia do conhecimento até o século V a.C., contendo informações e
instruções para a administração da cidade (nomos) e a constituição do caráter (ethos),
Platão precisa mostrar sua fragilidade conceitual para definir novos costumes públicos e
hábitos privados a partir de uma base racional que elimine dos objetos do conhecimento os
predicados antitéticos que encontram abrigo na poesia. As mães e as amas, que
permanecem desde cedo junto às crianças e lhes narram as primeiras fábulas antes de serem
enviadas à academia, não podem participar da formação do caráter infantil contando toda
espécie de fábulas conservada na tradição oral sem nenhuma forma de controle. As fábulas
se imprimem como cunhos no plasma moldável da alma infantil que está para ser iniciada
no sistema de inscrição de propriedade subjetiva. Quando Platão reconhece a potência
modeladora das fábulas, propõe como controle o princípio de seleção:
Logo, devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e selecionar as que forem boas, e
proscrever as más. As que forem escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a contá-las às
crianças, e a moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito mais cuidado do que os
corpos com as mãos. Das que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se (377c).
O motivo que leva Platão a refletir sobre o papel das fábulas conserva um duplo
sentido. Do mesmo modo que as fábulas fascinam em função da forma poética que
apresentam, também causam medo em função dos fundamentos que oferecem à instrução.
O Livro III da República é dedicado à purificação dos poemas épicos de Homero, como o
77
capítulo VI da primeira parte de Dom Quixote, onde o cura estabelece uma rigorosa censura
sobre a biblioteca do cavaleiro andante, enviando para a fogueira todos os livros
impróprios. A censura se dirige pontualmente a determinados conteúdos que aparecem aqui
e ali nos poemas homéricos, os quais estão em franca oposição ao modelo de virtude
adotado. Homero se desvia da verdade toda vez que representa homens e deuses lançados
para fora de si mesmos. O cuidado com o caráter dos homens e a natureza das cidades se
justifica na medida em que é necessário constituir e conservar a ordem política. Em Platão
não existe contradição entre o plano ético e o plano político. O guardião responsável pela
defesa da cidade deve assimilar o comportamento dos cães, o que equivale a ter vista aguda
e ouvido fino, ostentar coragem e moderação nos combates. Além disso, deve ser educado
como os cães, ou seja, precisa ser domesticado para uma finalidade específica. O objetivo
da justiça é alcançar a concórdia entre os cidadãos, instalar a coragem no interior da
comunidade dos guerreiros, definir a propriedade específica de cada identidade natural. O
modelo de educação visa submeter os homens e as cidades ao controle da constituição. A
alma, como a cidade, devem ter sua natureza constituída exclusivamente a partir do
princípio de conservação da unidade fundamental. O cálculo, como a dialética, devem ser
cultivados com a finalidade de que os homens possam adequar-se a um modelo
institucional previamente determinado. O plano geral de educação deve seguir os princípios
adotados nas injunções eletivas. Os cidadãos que habitam na cidade devem referir tudo
quanto fazem a um objeto imutável. Como Platão não consegue definir um sistema
conceitual que torne inviável todo questionamento, recorre à narrativa mítica, como havia
anunciado no uso adequado das fábulas para estabelecer o modelo a ser imitado (382d).
As passagens em que Platão censura os poemas homéricos confirmam a importância
do projeto de fundação da cidade governada por uma constituição racional. Homero precisa
91
Uma vez definido o campo de ação do rapsodo fora de sua atuação fundamental
relacionada com a declamação da poesia épica em público, torna-se necessário comprovar
se de fato Íon é capaz de esclarecer os enigmas da poesia épica, cujo conteúdo contempla o
intercâmbio que homens e deuses estabelecem na urdidura dos acontecimentos. Além disso,
é necessário determinar se a poesia se encontra próxima ou afastada da verdade. A
princípio a tarefa requerida do rapsodo parece ser de fácil execução, porém logo a
impressão inicial muda de sentido à medida que Íon é sitiado na argumentação socrática. O
rapsodo declara que ante a poesia de Homero é tomado por uma força desconhecida, cuja
natureza arrebatadora não se manifesta quando se envolve com a poesia de outros poetas.
Durante a apresentação Íon se comove e comove os espectadores em presença da poesia de
Homero. A rapsódia é uma mistura de recitação e dramatização sem acompanhamento
musical. A apresentação do rapsodo não está muito distante da encenação dramática, pois
sua performance coordenada do alto de um estrado é capaz de suscitar os sentimentos de
terror e piedade que mais tarde constituirão o núcleo da teoria aristotélica sobre a catarse.9
A capacidade do rapsodo de influenciar na afetividade dos espectadores aproxima a
rapsódia da sofística, da retórica, da representação. Platão reconhece somente a
9
A importância que Aristóteles atribui à mimese se deve ao efeito que a tragédia exerce sobre os espectadores
no espetáculo dramático. Como a mimese, a catarse é uma das heranças mais significativas da Poética.
Aristóteles define a tragédia como a imitação de uma ação de caráter elevado que suscita os sentimentos de
terror (phobos) e piedade (eleinon) e proporciona um corretivo das paixões humanas (1449b24). A
experiência da catarse é tão transformadora que proporciona o aprendizado de algum conceito universal. Por
universal Aristóteles entende a revelação dos elementos essenciais que estão presentes no conflito trágico, de
forma que a natureza do mundo com todos os seus mecanismos se torne um objeto do conhecimento racional.
A mimese trágica é valorizada enquanto forma de conhecimento que permite o acesso à realidade essencial da
natureza. Na tradição pitagórica "catarse" queria indicar a "purificação do corpo pela medicina e da alma pela
música". Assim como é possível curar-se um mal do corpo, cura-se também um mal da alma. Na tragédia a
catarse é a purificação da alma mediante o efeito da experiência estética. Para que essa finalidade seja
alcançada, a tragédia deve possuir a estrutura de um organismo vivo. O organismo vivo é composto de partes
de tal forma em conexão que o todo apresenta uma grandeza determinada. A grandeza deve necessariamente
possuir uma estrutura completa com início, meio e fim. Somente uma estrutura que componha um todo
coerente pode causar o efeito corretivo da ação dramática. A catarse cria uma relação de empatia com o mito
trágico, de forma que os personagens e os espectadores possam identificar a verdade na sua proporção natural.
92
negatividade da influência afetiva nas três atividades, cujo efeito de desapropriação da
identidade subverte o controle da razão na conservação da ordem interior. A paixão é em si
mesma subversiva, porque desencadeia uma série infinita de desapropriações.
Íon confessa que é capaz de interpretar cada passagem obscura dos poemas
homéricos, mas que não tem nada a dizer sobre qualquer texto de outro poeta. A confissão é
tudo o que Sócrates queria ouvir para delimitar a atividade recitativa do rapsodo – a
rapsódia. O objetivo é demonstrar que a rapsódia não é uma arte (tekhne), nem uma ciência
(episteme), mas o efeito de uma possessão divina, um transporte dionisíaco
(enthousiasmos).10 O poeta compõe inspirado pelas Musas. Assim, na abertura do poema
épico, Homero abdica de sua individualidade em favor da presentificação de uma força
divina que lhe é exterior; somente estando fora de si (ekphron), pode receber a poesia doada
pela divindade exterior; antes de deixar o domínio da razão e entrar no círculo de influência
das Musas, não dispõe de nenhuma técnica de composição de versos. A presentificação das
Musas na composição poética tem como efeito a fuga da poesia do controle da razão, uma
vez que durante a possessão divina quem engendra o poema belo não é o poeta habilidoso.
A poesia é definida como uma loucura divina que alimenta uma corrente de
desapropriações. O poema épico não é, portanto, uma obra humana, mas uma criação
divina que tem origem na atividade das Musas. As Musas entusiasmam os poetas. Os
poetas arrebatam os rapsodos. Os rapsodos encantam os espectadores. Todos integram uma
só cadeia em que a possessão divina exerce sua força de desapropriação em todos os elos.
Mais uma vez Platão recorre à potência alegórica da imagem para expressar o movimento
da poesia. Assim como uma pedra magnética atrai para o círculo de atração de seu campo
10
A propósito do transporte dionisíaco, cf. o ensaio “A poesia e seus entornos interventivos: uma tetralogia
para o Íon, de Platão” de Alberto Pucheu Neto in http://www.albertopucheu.com.br/pdf/ensaios/7_ion.pdf.
93
os anéis de ferro que se justapõem numa corrente solidária, a poesia conecta as instâncias
envolvidas no processo de desapropriação desencadeado durante a possessão divina.
Íon, diz Sócrates, esteja certo de que conheço o motivo por que você sabe o que dizer sobre
Homero, mas não sabe o que dizer sobre os outros poetas. Não é uma técnica – disse ainda
há pouco – que se encontra em você e o torna capaz de falar bem de Homero. Não, trata-se
de uma potência divina que coloca você em movimento, como ocorre com a pedra que
Eurípides denominou Magneto, e que a maior parte das pessoas chama Heracléia. Na
realidade, essa pedra não somente atrai anéis de ferro, como também transmite a eles a
mesma força que tem o poder de exercer a seu redor uma atração, de sorte que se forma às
vezes uma corrente muito longa de anéis de ferro interligados pela força de atração. Mas a
força posta em todos os anéis depende da pedra que os mantém interligados (533c-e).
Sob o estado de inspiração divina, a poesia se encontra fora do circuito da razão,
que é o elemento responsável pela conservação da identidade dos seres no pensamento de
Platão. Nenhuma das instâncias envolvidas na transmissão da poesia podem ser
consideradas aptas a decidirem sobre a verdade de um pensamento, por exemplo, se o poeta
diz a verdade quando apresenta uma estratégia de combate no meio de uma guerra entre
povos inimigos. Como os coribantes e as bacantes que se põem a dançar quando habitados
por um deus, o poeta só compõe e o rapsodo só declama abandonados à inspiração divina.
Além disso, outro fator contribui para desqualificar a autenticidade da arte do rapsodo.
Trata-se da competência de avaliar mais de uma arte, uma vez que técnicas diferentes são
requisitadas ao mesmo tempo na poesia épica. Na definição de Sócrates, Íon deve conhecer
profundamente o pensamento de Homero, o que pressupõe que tenha um relacionamento
íntimo com toda a matéria diversificada que recebe a atenção do poeta. Assim, deve
conhecer a hipologia, a medicina, a pesca, enfim, uma série de técnicas cujo domínio eficaz
não parece de fácil aquisição. Se Íon é questionado sobre quem tem mais competência para
avaliar as descrições de Homero, se o artífice especializado numa técnica ou se o rapsodo
portador de um saber enciclopédico, sem a perspicácia que lhe é própria Íon responde que
94
os artífices citados são mais capazes de julgar o que Homero diz em seus poemas. A
aceitação passiva das idéias de Sócrates tem por conseqüência inevitável a especialização
do conhecimento verdadeiro. Cada técnica particular deve possuir apenas um objeto, de
forma que se possa identificá-la a partir da determinação do objeto específico. A pretensão
do rapsodo de conhecer vários objetos ao mesmo tempo gera desconfiança em relação à
natureza de seu conhecimento. Se por definição a técnica compreende um conjunto de
regras e de condutas específicas assentadas no conhecimento científico que opera uma
intervenção prática na realidade imediata, como o rapsodo pode dominar a elaboração de
procedimentos tão diferentes entre si?, de que natureza é a arte da rapsódia que representa a
ciência de vários objetos ao mesmo tempo? A resposta não demora muito a ser anunciada, e
o rapsodo deve escolher se a rapsódia é uma arte realmente divina, ou se é uma ambição
infundada, imprópria, sem capacidade técnica. Em ambos os casos o resultado não é muito
bom para a rapsódia. Seja uma arte divina, seja uma arte injusta, o desfecho do diálogo não
deixa dúvida de que a rapsódia é de fato uma arte falsa. Íon é acusado de ser um impostor
por não dominar as técnicas que dissera conhecer inicialmente. O princípio de
especificação das técnicas elimina a pretensão da rapsódia de constituir uma técnica, uma
ciência, na medida em que deseja conhecer vários objetos ao mesmo tempo.
Platão examina o conhecimento que a arte do rapsodo se autoriza. A investigação
procura compreender a natureza de seu conhecimento sobre a poesia homérica. A demanda
de uma exposição clara sobre o saber da rapsódia assinala a necessidade de determinar seu
objeto. Desde o início Sócrates suspeitava de que Íon não alcançaria uma defesa satisfatória
da rapsódia enquanto interpretação dos poemas homéricos. Sua arte não constitui uma
tekhne humana, conclui o personagem de Platão; consiste antes numa produção divina sem
objeto específico, sem unidade racional, sem conhecimento da verdade. Uma vez que
95
somente o controle da razão é capaz de garantir a boa formação de uma técnica, a rapsódia
deve abandonar a pretensão de constituir uma técnica ao lado de outras. A ascendência
divina da rapsódia tem dois efeitos fundamentais: retirar a rapsódia da determinação da
verdade e desqualificar sua pretensão à ciência universal. A filiação da rapsódia ao regime
do sagrado parece lhe conceder um estatuto privilegiado na hierarquia das artes, no entanto,
no regime da palavra laicizada que constitui o modelo hegemônico da Grécia clássica, tal
associação antes desautoriza a pretensão do rapsodo de ser o intérprete de Homero. A
performance da representação que engendra o entusiasmo da possessão divina em cadeia
ascendente confunde sujeito e objeto na desapropriação indiferenciada da natureza. O
rapsodo não pode reivindicar uma ciência da verdade se não distinguir o sujeito do objeto,
se não deixar de se envolver afetivamente com a recitação do poema, se não deixar de
encantar o público com o ritmo, a imagem, o sentido da forma poética. A rapsódia e a
poesia são confrontadas com um tipo de conhecimento centrado na racionalidade. A
experiência estética não é passível de auto-reflexão, não agencia o distanciamento
necessário para a análise e síntese de sua forma, não reflete livremente sobre as diferentes
paixões que dominam o entusiasmo poético. O pensamento (dianoia) é a medida (metron)
do que cada coisa é (ousia) – a completude da natureza de cada coisa em sua totalidade.
Poeta e rapsodo podem ser os porta-vozes dos deuses, porém a verdade é que não partilham
da técnica, nem da ciência objetiva. A desqualificação da arte do rapsodo se estende à arte
do poeta, afinal o rapsodo é um intérprete do poeta, um "Filho de Homero" (530d).
Platão confere ao objeto da poesia uma natureza divina que não pode constituir o
fundamento da verdade objetiva que governa o pensamento racional da primeira filosofia.
A inspiração divina retira o domínio da técnica científica do horizonte da poesia, o que
torna possível a desqualificação de seu trabalho pelo pensamento racional, forma de
96
conhecimento que se separava da esfera mítico-religiosa desde os pré-socráticos. A
caracterização do processo de transformação por que passa o pensamento grego à época de
Platão repercute os fundamentos da associação entre poesia e inspiração divina. Marcel
Detienne assinala as mudanças mais significativas no modo de organização do pensamento
grego entre os séculos VII e V a.C em Os mestres da verdade. A Grécia arcaica reconhece
o rei, o adivinho e o poeta como os verdadeiros porta-vozes dos deuses imortais. A palavra
que proferem é portadora da vidência mântica de natureza cósmica, cuja ordem natural
institui um mundo organizado por sua própria virtude. O pensamento mítico-religioso
confere à palavra sagrada uma potência capaz de realizar tanto a vontade dos deuses quanto
o desejo dos homens. A palavra mítico-religiosa é essencialmente uma palavra de
constituição indeterminada, pode dizer a verdade ou encobrir a realidade, pode realizar o
que antecipa ou desviar-se do plano estabelecido. A verdade (aletheia) é da mesma forma
um amálgama ambivalente, uma mistura que engloba tanto o brilho da justiça (dike), a
confiança do juramento (pistis), a precisão da memória (mnemosyne), quanto a sombra do
engano (apate), o engano da falsidade (pseudes), a falsidade do esquecimento (lethe). O
significado simbólico das Musas, filhas de Memória, auxilia na compreensão dos limites da
palavra mítico-religiosa. As Musas são responsáveis pela transmissão da memória coletiva
de geração a geração, pela conservação dos sacrifícios em honra dos deuses, pela distinção
das grandes façanhas dos heróis, enfim, pelo estabelecimento de diversas técnicas
socialmente úteis. Hesíodo reconstitui a formação ambivalente da inspiração de origem
musal na Teogonia: "Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só, / sabemos muitas mentiras
dizer símeis aos fatos / e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações" (2003, p. 107).
Como as Musas do monte Hélicon que distribuem o falso e o verdadeiro, que recordam e
fazem esquecer a verdade se assim desejam, a aletheia mítico-religiosa encerra uma
97
natureza ambivalente. O próprio significante aletheia conserva lethe em seu interior, de
forma que lethe participa de aletheia desde a estrutura lingüística da palavra. A relação
entre aletheia e lethe é constituída em torno da complementaridade de potências opostas
que convivem num espaço de indeterminação. A Memória entre os gregos não visa
reconstituir o passado segundo uma perspectiva histórica, como uma onisciência de caráter
adivinhatório, a Memória compreende um saber mântico, define-se pela fórmula “o que é, o
que será, o que foi" (Detienne, 1988, p. 17). A Memória não constitui somente uma
instância de celebração e conservação da tradição, desde que as Musas intervêm no
discurso poético, o poeta adquire a potência criativa que confere à palavra poética o
estatuto de palavra-eficaz. "A palavra, uma vez articulada, torna-se uma potência, uma
força de ação", nesse contexto, "a palavra é uma coisa viva, uma realidade natural que
brota, que cresce" (Detienne, 1988, p. 34). A palavra é assim um ser da realidade natural,
uma parte da physis que deve ser concebida como um dos elementos que está submetido às
leis de fecundidade e esterilidade. Não se pode esquecer que a verdade na Grécia arcaica
está relacionada com determinadas funções sociais. O sistema palacial mostra que o rei, o
adivinho e o poeta encarnam o princípio de autoridade que promove a função de soberania
a instância determinativa da justiça, da verdade, da natureza. O rei é um detentor e
distribuidor de riquezas; o adivinho possui o privilégio da potência mântica; o poeta é um
funcionário da soberania. Os homens da soberania são os mestres da verdade, da verdade
que se define através da mesma concepção de aletheia.
O poeta exerce uma dupla função no sistema palacial da sociedade micênica:
celebra as conquistas dos deuses no plano das teogonias e cosmogonias, enaltece as
façanhas dos heróis no plano das realizações humanas e semidivinas. A dupla celebração
caracteriza a disposição mental da organização social micênica, dividida em duas ordens
98
principais, deuses e homens, reis divinos e guerreiros heróicos. Quanto à decisão sobre o
membro da comunidade de guerreiros que realmente apresenta os atributos que merecem
ser perpetuados na memória coletiva, o poeta é um árbitro supremo que pode qualificar ou
desqualificar os atos de bravura dos indivíduos que promovem a soberania do rei. Bravura e
covardia são os pesos fundamentais que presidem a avaliação do servidor das Musas.
Cumpre ao poeta decidir sobre a permanência de um guerreiro na memória ou no
esquecimento da comunidade dos semelhantes (homoioi). É o poeta que concede ou nega a
memória através de seu louvor ou de sua censura. A glória que o guerreiro recebe em
combate é uma espécie de graça divina (kudos) e um louvor (kleos) que se transmite de
boca em boca, de geração a geração (Detienne, 1988, p. 19). A palavra poética, palavra
viva que é potência eficaz, pode fazer de um simples mortal um rei todo-poderoso,
conferindo-lhe a realidade de um homem altamente qualificado. O louvor poético acorda,
recorda, concorda; a censura poética apaga, silencia, mergulha no esquecimento. A palavra
poética é uma potência de vida e de morte, cuja ambivalência pode essencializar o herói no
relato ou nadificar o herói no silêncio. "O campo da palavra poética se equilibra pela tensão
de potências que se correspondem duas a duas: de um lado, a Noite, o Silêncio, o
Esquecimento; do outro, a Luz, o Louvor, a Memória" (Detienne, 1988, p. 20). A palavra
poética conserva a potência de comunicar imediatamente a realidade natural. Cada palavra
que o poeta pronuncia no ato genesíaco da criação poética anuncia a formação de uma
realidade natural entre os homens e os deuses. O poeta é o porta-voz das Musas, filhas de
Memória, fonte de aletheia ambivalente. Como os contrários são complementares e
obedecem à lógica da ambigüidade, o mestre da verdade pode ser também o mestre do
engano. Quando o poeta faz o elogio de um herói, sua existência se confunde com o logos
poético, à narração da palavra-eficaz, corresponde a formação da verdade irrefutável.
99
O poeta tem o dom da vidência, como o rei e o adivinho, contempla aletheia. A
disposição mental que consagra a primazia da palavra-eficaz como potência míticoreligiosa da verdade dominou o imaginário grego no período arcaico de sua formação. A
estrutura social do período arcaico, centrada na hegemonia da soberania real, é contestada
pelo novo quadro conceitual que organiza a sociedade grega. Quando o sistema palacial
conhece o declínio de suas principais instituições, o que leva à reformulação do exercício
da soberania real, os oficiais da magistratura aprimoram uma nova forma de poder político
que consolida práticas judiciais codificadas por um grupo social mais amplo.11 O poeta,
quando recita uma narrativa mítica, colabora com a ordenação do mundo, afirmando a
cosmologia triunfante dos deuses olímpicos, quando louva as façanhas de um guerreiro,
institui uma realidade permanente, interferindo na organização do mundo. O estatuto da
palavra-eficaz não demanda demonstração, nem permite contestação de sentido, dispõe de
uma série de obstáculos à reflexão sobre o valor da palavra compreendida como uma força
natural. Para que fosse levantado o problema da relação entre a palavra e a realidade, era
preciso que se consumasse um novo quadro conceitual na organização da cidade. A nova
prática política na Grécia clássica designa o confronto do logos na assembléia deliberativa
como determinante fundamental da relação do homem com a realidade. A aristocracia
guerreira do período arcaico conhecia o modelo da assembléia deliberativa. A assembléia
militar em que se debatiam assuntos de interesse da comunidade prenuncia o regime
jurídico codificado numa constituição que aprofundará a forma pré-jurídica do passado. A
11
Vernant chega mesmo a dizer que o palácio micênico é o eixo central da organização social em As origens
do pensamento grego. “A vida social aparece centralizada em torno do palácio cujo papel é ao mesmo tempo
religioso, político, militar, administrativo e econômico. Neste sistema de economia que se denominou
palaciana, o rei concentra e unifica em sua pessoa todos os elementos do poder, todos os aspectos da
soberania. Por intermédio de escribas, que formam uma classe profissional fixada na tradição, graças a uma
hierarquia complexa de dignitários do palácio e de inspetores reais, ele controla e regulamenta
minuciosamente todos os setores da vida econômica, todos os domínios da atividade social”(2003, p. 24).
100
assembléia guerreira consagra o direito à fala, estando os membros autorizados a
encaminhar-se ao centro da assembléia, quando era necessário expor um assunto de
interesse da comunidade dos iguais. O guerreiro se define como um bom realizador de
façanhas na guerra e um hábil produtor de discursos na assembléia. O regime da assembléia
explora a potência da palavra-diálogo. A propriedade da palavra não se restringe a
personagens restritos, a assembléia torna a palavra acessível a um grupo social mais amplo.
A força da palavra não depende somente do assentimento da soberania real, determina-se o
valor da palavra pela aprovação ou desaprovação da assembléia deliberativa. Estão
lançadas as bases de formação da palavra jurídica e da palavra filosófica, como também da
palavra sofística e da palavra retórica. O traço característico da palavra-diálogo é a
exigência de se submeter o conteúdo que introduz na realidade à demonstração pública, a
alguma forma de julgamento que contemple o sentido da hipótese apresentada. O estatuto
da palavra-diálogo depende de sua potência persuasiva, de sua capacidade de conquistar a
aprovação do contraditor, de sua astúcia em superar a contradição dialética. A palavradiálogo é um instrumento de dominação sobre os homens, uma primeira forma de retórica,
um primeiro rumor de sofística, uma primeira manifestação de filosofia.
A assembléia guerreira se transforma na assembléia democrática da agora, praça
pública onde os membros da comunidade decidem sobre as questões de interesse comum. A
criação da polis com suas instituições jurídicas e políticas tornou-se possível graças à
transformação da representação humana na organização do pensamento mítico-religioso. A
laicização da palavra-eficaz se processa na sofística e na retórica, na filosofia e no direito.
A formação da polis assiste ao advento do novo estatuto da palavra-diálogo, concebida
como um instrumento de determinação ou indeterminação da verdade. O pensamento
mítico-religioso permitia que aletheia fosse portadora da memória e do esquecimento, da
101
fertilidade e da esterilidade, da verdade e da falsidade. A lógica da ambigüidade deixa de
ser o modelo hegemônico no período clássico, que preside a formação da lógica da
contradição em que a verdade deve estar separada da falsidade. A palavra-diálogo é um
instrumento de contestação e demonstração, um verbo dialético (dialegesthai) por meio do
qual os homens se combatem e se esclarecem reciprocamente (agon). O combate constitui
um domínio em que os homens se encontram, se interrogam, se desconhecem. A reflexão
sobre a linguagem se desdobra em duas grandes direções no período clássico: de um lado, a
sofística e a retórica acolhem o logos como um instrumento de ação sobre os homens; de
outro, a filosofia subscreve o logos como meio de reconhecimento da verdade.12 Se a
sofística e a retórica definem o logos como uma realidade dominada pela potência astuciosa
de apate, o imaginário grego representa apate como uma raposa que encarna o caráter
duplo e ambíguo de que não se pode extrair uma verdade uniforme, a filosofia define o
logos como uma realidade constituída por uma natureza múltipla e heterogênea de que se
pode separar o conceito da opinião, a verdade da falsidade, o ser do não-ser. Uma aletheia
está misturada com apate, a outra está purificada de toda impureza. A perspectiva teórica
que reconhece o valor positivo da verdade indeterminada não desqualifica a forma da
contingência ambígua expressa na associação do logos. "De fato, a sofística e a retórica,
que aparecem com a cidade grega, são formas de pensamento, tanto uma quanto outra,
fundamentalmente orientadas para o ambíguo" (Detienne, 1988, p. 61). A visão
12
As duas tendências decidem a sorte do logos, sendo que o filósofo opta por um "logos verdadeiro" e o
sofista e o retórico optam por um "logos enganoso". A propósito da sofística e da retórica, escreve Detienne:
"Em um mundo onde as relações sociais são dominadas pela palavra, o sofista e o retórico são ambos técnicos
do logos. Ambos contribuem na elaboração de uma reflexão sobre o logos como instrumento, como meio de
ação sobre os homens. Para o sofista, o campo da palavra está delimitado pela tensão dos dois discursos sobre
cada coisa, pela contradição das duas teses sobre cada questão. Neste plano de pensamento, regido pelo
'princípio de contradição', o sofista aparece como o teórico que torna lógico o ambíguo, e que faz desta lógica
o instrumento próprio para fascinar o adversário, capaz de fazer triunfar o menor sobre o maior. O fim da
sofística, assim como o da retórica, é a persuasão (peitho), o engano (apate)" (1988, p. 62).
102
essencialista concebe a potência subversiva da ambigüidade como um obstáculo à
caracterização da verdade oscilante de sentido indeterminado. O ambíguo é definido como
a instabilidade do acontecimento presente, da realidade que muda continuamente, da
relação que demanda um conhecimento múltiplo. Para atingir o conhecimento do ser
através da linguagem depurada do logos ambíguo, somente é possível considerar como
forma verdadeira o que não conhece a geração e a morte. A sofística e a retórica são
freqüentemente desqualificadas, porque reconhecem um logos ambíguo e uma aletheia
recortada por apate. Como não definem o que cada coisa é na realidade natural, uma
espécie de ser que nunca se degrada com o tempo, são caracterizadas como um
conhecimento falso, uma forma de conhecimento que envolve somente opiniões (doxai).
Disposições
mentais
com
preocupações
diferentes
acolhem
perspectivas
divergentes. A lógica da contradição demarca uma zona de termos antitéticos, configura um
pensamento de alternativa que impõe uma escolha necessária: alma ou corpo, razão ou
paixão, inteligível ou sensível, permanência ou transformação, pureza ou impureza,
essência ou aparência, verdade ou falsidade, natureza ou invenção, ser ou não-ser... A
lógica da contradição que procura silenciar a lógica da ambigüidade em que o verdadeiro
não nega jamais o falso dita as normas do pensamento racional. É natural que a poesia e a
rapsódia se oponham à filosofia por pertencerem a um regime mítico-religioso que não
pode decidir sobre a natureza da verdade em sua nova versão objetiva. A poesia e a
rapsódia, encerradas nas malhas do regime mítico-religioso, não possuem uma tekhne, nem
uma episteme que possam assegurar a força afirmativa de seu saber frente à palavra-diálogo
da filosofia. Não lhes resta outra alternativa senão capitular-se ao jogo de perguntas e
respostas do método dialético, uma vez que a palavra poética perdeu o estatuto de verdade
quando foi vinculada ao regime mítico-religioso que não representa mais o poder decisório
103
na polis dialógica. O saber do poeta não entra em acordo com a razão por encontrar-se fora
da lógica racional.
A reconstituição da teoria platônica da mimese não pode ignorar a existência do
Sofista. O diálogo que figura entre os últimos textos de Platão tem por protagonistas o
jovem Teeteto e um filósofo originário de Eléia que ocupa o lugar habitualmente reservado
a Sócrates. A investigação dialética tem início com a proposição socrática que demanda a
diferenciação genérica entre o filósofo, o político e o sofista. A argumentação do diálogo
elege como projeto fundamental a diferenciação entre o ser e o não-ser para na seqüência
determinar com segurança o gênero do sofista. A definição do político ocorrerá em outro
momento. Quanto à definição do filósofo, permanece uma lacuna nos diálogos de Platão.
A tarefa do Estrangeiro de Eléia é demonstrar através de uma definição o que o
sofista é. Trata-se de uma tarefa complexa que se estende por todo o diálogo. Como forma
de aproximação do sofista, o Estrangeiro desenvolve o método dialético. Vimos que o
método dialético emprega a divisão progressiva de um gênero em diferentes espécies para
que possa alcançar a definição da natureza essencial com a especificação do objeto
buscado. O método dialético sobrevaloriza a técnica de divisão que visa separar o melhor
do pior, o semelhante do dessemelhante, a cópia do simulacro. A divisão dialética é movida
pelo desejo de purificação que permite suprimir tudo o que há de vicioso na mistura
indevida. Para definir a arte do sofista o Estrangeiro resolve partir de um objeto menos
obscuro – a arte da pesca à linha. O Estrangeiro detecta de saída a existência de campos que
enquadram uma grande variedade de artes mais restritas: a arte da produção e a arte da
aquisição. Da arte da aquisição subtrai sucessivamente 1) a arte da caça, 2) a arte da caça
aos seres animados, 3) a arte da caça aos animais aquáticos, 4) a arte da caça com o anzol e
encontra, finalmente, 5) a arte da pesca à linha. A ramificação da divisão dialética é aqui
104
simplificada, uma vez que Platão reconhece a existência de outros gêneros que não foram
mencionados na cadeia lógica. O procedimento da divisão dialética evidencia que cada
gênero apresentado num segmento é diferente de outro gênero situado logo ao lado.
A aplicação do método dialético na definição da pesca à linha não ocorre somente
por ser um gênero menos complexo que se revela mais rapidamente à divisão. Quando
buscamos o motivo por que a arte da aquisição domina a reflexão inicial, identificamos
uma certa comunicação pressuposta entre a pesca e a sofística. O fato de o Estrangeiro se
apropriar da imagem da caça para se referir à atividade do sofista evidencia o ímpeto
determinativo de sua classificação. O sofista é um animal, cão ou lobo, de múltiplas
cabeças que é preciso cercar, capturar e abater impiedosamente. O bom caçador deve
conhecer sua caça, saber onde se esconde quando acuada, construir a melhor armadilha
para conter a fuga ou o ataque da presa quando for capturada na rede da argumentação.
Capturar o ser do sofista é o mesmo que definir a arte que o caracteriza. A arte do sofista é
tributária dos grandes modelos identificados inicialmente. Como membro da arte da
aquisição, o sofista conhece 1) a arte da caça aos animais, 2) a arte da caça aos animais
terrestres, 3) a arte da caça aos animais domesticados, 4) a arte da caça aos animais
racionais e 5) a arte da caça aos homens particulares por um salário sob o disfarce da
educação de jovens ricos e ilustres. A arte da produção se reparte em 1) arte divina, 2) arte
humana, 3) arte produtora de realidades, 4) arte produtora de imagens, 5) arte produtora de
cópias e 6) arte produtora de simulacros. Deus é o artífice que trouxe ao mundo tudo o que
nele antes não existia. Os seres existem graças a uma razão e a uma ciência divinas que lhes
proporcionam uma forma determinada na realidade natural. O homem superior compõe
suas obras a partir do modelo divino. Platão apresenta a arte da produção partindo de um
modelo de divisão fundamentado no estabelecimento de hierarquias entre os seres. Deus é o
105
autor dos seres que antes não existiam. O arquiteto é um artesão que reproduz o modelo
estabelecido. O pintor é um imitador que somente conhece imagens, simulacros e ilusões.
Platão introduz assim a diferença entre o modelo, a cópia e o simulacro. O modelo governa
o mundo das formas imutáveis, uma vez criado nunca mais deixou de ser o que é. A cópia
reproduz a identidade do modelo conceitual, respeitando sua medida ao acolher o traço
apropriado. O vínculo de semelhança proporciona uma relação harmônica entre a cópia e o
modelo. O simulacro, ao contrário, não aceita nenhuma medida anterior, posicionando-se
contra toda forma de coerção assinalada pelo modelo, divino ou humano. A ruptura com o
vínculo de semelhança que liga a cópia ao modelo tem como efeito imediato a produção de
uma realidade marcada pelo regime da diferença que modifica continuamente seu modo de
ser. Platão não se desvencilha dos princípios que fundamentam o Livro X da República:
Mas o que pensar da nossa arte, questiona o Estrangeiro? Não diremos que a arte do
arquiteto produz a casa em si mesma e a arte do pintor produz uma outra casa, que é como
um sonho humano fabricado para a utilização de indivíduos despertos (266c)?
O sofista é encerrado na técnica de produção de imagens falsas sem nenhum
comprometimento com a verdade como se deleitasse somente com um jogo ilusório. Os
efeitos dessa delegação são visíveis nos atributos que Platão escolhe para caracterizá-lo. O
sofista desenvolve sua arte com a finalidade de conseguir um salário para sua subsistência.
A preocupação com a educação dos jovens ricos e ilustres não passa de uma encenação
para encobrir seu verdadeiro interesse. O sofista é um negociante de conhecimento que
pode originar-se tanto de sua própria fatura, quanto de algum sábio intermediário. Além
disso, o sofista conhece o método dialético, pois domina a técnica da disputa que questiona
o valor das opiniões e assinala a contradição dos discursos. O sofista é assim um
106
purificador de opiniões que constituem obstáculos ao conhecimento da verdade. O fato de
transmitir a técnica da disputa aos jovens, ensinando-lhes como contradizer os fundamentos
das leis e dos costumes, torna a sofística uma atividade bastante perigosa. A técnica da
disputa é essencialmente uma capacidade de contestar todas as coisas que não têm o poder
de escapar da descoberta da contradição em sua constituição interna. O sofista ocupa um
domínio de difícil determinação, uma vez que o filósofo é antes de tudo um espírito
dialético que libera o pensamento de sólidas opiniões enganosas. Nasce então a necessidade
de resolver a indefinição de papéis que permanece como questão na medida em que o
sofista exerce a arte da contradição. É preciso isolar o sofista do filósofo e do político para
mostrá-lo em toda a sua pureza. A tarefa de purificação reconduz à hipótese original de que
o sofista é um produtor de imagens falsas, cuja força reside numa espécie de poder
encantatório que exerce sobre os jovens ingênuos que não conseguem distinguir uma
aparência de realidade de uma realidade verdadeira. O mercador de ilusões é um mágico
produtor de encantos, um imitador de coisas reais que torna difícil o reconhecimento de seu
gênero por se esconder "na obscuridade do não-ser e, preso ao não-ser, se camuflar” (254a).
Potencialmente o sofista pretende contradizer tudo e produzir realidades de
fundamento impreciso. Sua vinculação à arte da aquisição e à arte da produção sugere uma
ambição que não conhece limites. Dizer alguma coisa sobre alguma coisa é
simultaneamente uma atividade dialética e uma atividade produtiva. O sofista apresenta
conferências e exposições, desenvolve demonstrações e associações de idéias, buscando
convencer seus auditores de uma realidade que não tem existência verdadeira. Desde que
Platão associa o sofista à arte mimética, a sofística é definida como um falso conhecimento,
um conhecimento que promete mais do que pode cumprir. A metáfora do espelho é
reconvocada, e a "imagem falada" da sofística reflete a "imagem visual" do espelho (234c).
107
O sofista é o mais sábio dos homens que pretende saber tudo o que acontece com as coisas
para poder definir a realidade existencial de cada uma delas. A ostentação de um saber
universal que parece incontestável conta ainda menos pontos a seu favor. Como um mesmo
homem pode ter respostas para todas as coisas e ensinar tudo a qualquer outro homem por
pouco dinheiro e em pouco tempo?, pergunta-se incrédulo o Estrangeiro (234a). O que é
problemático no projeto da sofística é a capacidade que ostenta de contradizer tudo e todos,
sobretudo quando essa especialidade torna possível a negação da existência do falso. Caso
o falso não pudesse de fato ter nenhuma forma de existência, o não-ser não existiria na
realidade, de forma que o sofista não poderia ser acusado de enganar seus auditores com a
transmissão de um conhecimento que não possui, na medida em que o falso não poderia
nem mesmo ser enunciado através do discurso. A teoria do ser está associada a uma teoria
do discurso. Os seres existem, porque podem ser enunciados por discursos. Sua natureza
pode ser decodificada no pensamento, porque o discurso é um ser capaz de descobrir a
existência de outros seres. Para demonstrar que o falso existe para além da imagem visual
no interior da imagem verbal, o Estrangeiro se aventura na refutação de um conhecido
axioma de Parmênides. "Que jamais seja afirmado que o não-ser existe. Quando estiver
investigando, afaste o seu pensamento desse caminho" (237a). Se o não-ser existe
realmente, é possível testemunhar a relação que o sofista mantém com o falso.
Embora saiba que a definição do número e da constituição dos seres não seja uma
tarefa fácil de ser conduzida, o Estrangeiro se arrisca na refutação da tese de que o não-ser
não existe, nem pode ser conhecido, tampouco pode ser pronunciado. É preciso demonstrar
que o não-ser existe de alguma forma, ainda que se envolva numa série de contradições. A
situação em que se encontra assinala a posição contrária de sua argumentação em relação
ao pensamento de Parmênides. O problema da constituição (a qualidade) dos seres é mais
108
importante que a questão do número (a quantidade) dos seres no Sofista. O exemplo
escolhido para o desenvolvimento da argumentação torna evidente o que o Estrangeiro
pensa sobre o ser e o não-ser. O ser resulta da comunicação recíproca entre o movimento e
o repouso que se associam na constituição de sua natureza heterogênea. O movimento não é
o repouso, nem o repouso é o movimento, mas ambos se associam na constituição do ser.
Na realidade o movimento é um outro em relação ao repouso, da mesma forma que o
repouso é um outro em relação ao movimento. Cada um deles é o mesmo que ele mesmo e
um outro em relação ao outro. Os gêneros que aparecem nessa relação servem tanto de
amostra da comunicação recíproca das formas, quanto de demonstração convincente da
existência do não-ser. O não-ser é sinônimo de outro-ser, isto é, alguma coisa que é
diferente de outra coisa. O ser e o não-ser estão de tal maneira entrelaçados que é
impossível distingui-los de uma forma absoluta. No entanto, o esclarecimento de um gênero
ilumina a caracterização de outro, como se verifica no processo que toma forma na divisão
dialética. A definição do ser no Sofista é uma determinação relativa da existência. Se
aceitarmos a hipótese de que o ser é uma relação de diferenças, estará comprovada a
existência do não-ser como o outro do ser. É preciso reconhecer que o não-ser não é o
contrário do ser, como pode sugerir a partícula negativa que de fato introduz a negatividade
na realidade do ser. A negação não se refere à oposição de contrários, mas a uma série de
diferenças que se misturam na composição da unidade que é uma e outra coisa. O não-ser é
identificado como um outro real que participa da realidade do ser. A negação também
significa que o mesmo gênero pode receber atributos afirmativos e negativos (257c).
Platão descobre que o uno e o múltiplo coexistem na definição do ser. Cada ser
admite em sua composição uma multiplicidade de não-seres não-idênticos. O ser é assim
uma potência relativa que impulsiona os gêneros à comunicação recíproca das formas. Com
109
isso Platão introduz no domínio do ser a comunicação de diferenças ou a mistura de
atributos diversos. Identidade e diferença são dois princípios fundamentais que definem
cada coisa particular. Platão não afirma nem a unidade universal, nem a pluralidade
absoluta do ser. A existência é o resultado de uma relação comunicativa entre identidades e
diferenças. O ser é uma mistura, uma associação, uma participação. A tarefa da dialética é
indicar que gêneros se associam ou não a outros gêneros. Gêneros, formas e idéias são
sinônimos nesse contexto, e a noção de unidade permanece essencial, pois somente a
determinação de cada gênero particular e concreto é capaz de fornecer os elementos para a
definição do ser participativo. Para que a natureza do outro seja conhecida como uma forma
determinada, é preciso reconhecer o que o ser de cada coisa é, em que medida o ser e o nãoser penetram em todas as formas e se penetram mutuamente (258a-b). Platão deposita no
trabalho filosófico que promove o método dialético a modelo de investigação o desejo de
que é capaz de separar com precisão racional as relações possíveis das relações
impossíveis. No entanto, como Platão pode ter certeza de que as separações estabelecidas
na divisão dialética conseguem isolar sem risco de erro o verdadeiro do falso? Não existe
na promoção do método dialético a modelo de investigação racional nenhum critério que
garanta a infalibilidade de seus procedimentos. Nada impede que outras divisões não só
sejam enunciadas, como também experimentadas na realidade. A teoria das idéias pode
continuar sendo o paradigma da verdade, mas Platão enfrenta uma série de dificuldades ao
definir a natureza dos gêneros. O problema que se anuncia agora sofre com os impasses da
dificuldade de se separarem definitivamente as relações possíveis das relações impossíveis.
A
definição
do
ser
apresentada
anteriormente
é
responsável
pelo
redimensionamento da teoria das idéias. Antes de escrever o Sofista Platão havia
caracterizado o mundo inteligível pelo repouso e o mundo sensível pelo movimento. A
110
nova definição do ser indica que as idéias eternas e as cópias perecíveis estão em
movimento contínuo. O ser é uma potência (dynamis) que pode agir sobre uma coisa
natural ou sofrer uma ação (247d-e). A potência pode ser verificada na relação entre a ação
de conhecer e a realidade do conhecimento abstrato, entre o sujeito e o objeto que
constituem um movimento ativo e um movimento passivo respectivamente. O pensamento
e o conhecimento existem, porque existe uma potência de comunicação recíproca entre as
formas que exerce sua força na realidade existencial dos seres. Se as definições anteriores
caracterizavam o ser enquanto quantidade e qualidade determinadas, a nova ontologia
platônica concebe o ser como uma potência, uma espécie de energia que põe os seres em
determinada relação. Tudo o que é pode ser considerado portador de uma realidade efetiva
que apresenta um potencial de relação determinado. O ser coabita, portanto, com o não-ser.
O não-ser é um ser determinado e diferente que se distingue de um outro ser determinado e
diferente, como um gênero de outro gênero, a retórica da sofística, a arquitetura da pintura,
a filosofia da literatura... Naturalmente o que o Estrangeiro entende como não-ser está bem
longe do que Parmênides pensava sobre o problema. Sua argumentação tem por finalidade
promover um conceito que permita pensar a existência do não-ser. Desde que se entenda o
não-ser como o outro do ser, torna-se possível enunciar a seguinte assertiva: o não-ser
existe, como o ser existe. Resta agora retornar à caça ao sofista e ver se ele escapa do
raciocínio engendrado.
Quando lemos em Platão "O não-ser se revelou como um gênero entre outros
gêneros, distribuído na constituição de todos os seres" (260b), podemos imaginar uma
abertura sem limites para o pensamento da multiplicidade, a forma desse pensamento teria
por princípio o reconhecimento de que os seres são inúmeros e as realidades diversificadas.
Nada nos impede de extrair essas e outras proposições abstratas do Sofista, sobretudo
111
porque Platão insiste em dizer que o não-ser é um outro diferente do ser, o próprio projeto
de definir a natureza do sofista instaura no diálogo um mundo repleto de paradoxos
desconcertantes. No entanto, não estaríamos identificando o núcleo emblemático do
pensamento de Platão no momento em que procura projetar uma perspectiva sobre a
realidade fundamental dos seres. A concepção do ser como uma potência de comunicação
recíproca entre os gêneros possibilitava a coabitação de noções diferentes no pensamento
platônico. A relação contrastiva ser/não-ser redimensionava a dicotomia opositiva mundo
inteligível/mundo sensível. Embora não se possa negar a relação de participação que existe
entre o mundo inteligível e o mundo sensível, as duas realidades ocupam posições
hierárquicas bem distintas no pensamento platônico. Nesse sentido, a nova ontologia
poderia subverter os fundamentos da antiga hierarquia, na medida em que instaurasse como
princípio ordenador a relação diferencial que permeia a existência do ser e do não-ser. De
fato, o não-ser não é um espaço vazio de ser, nem menos ser que o ser. Além disso, as
formas imutáveis que existem fora do pensamento não estão mais em repouso absoluto e
isoladas umas das outras na realidade metafísica, uma vez que a noção de comunicação,
associação e participação se estende às idéias imutáveis. Os novos fundamentos estavam
dados, e a conceituação acenava com a possibilidade de rever a hierarquia dos seres. No
entanto, a permanência da técnica de divisão como princípio ordenador do método dialético
tornava impossível a não hierarquização entre os seres, de forma que alguns deles tivessem
sua aparição ofuscada pela figuração hegemônica de outros. A definição do não-ser não
tinha por finalidade reconhecer a multiplicidade dos seres com exclusividade. O ser
continua uno na definição do Sofista, já que é a unidade da multiplicidade. A demonstração
do não-ser é feita com a finalidade de derrubar o argumento sofista de que o não-ser não
existe. Com a comprovação da existência do não-ser, o sofista é encerrado na técnica de
112
produção de imagens falsas. A imitação da realidade é uma espécie de produção, embora só
produza imagens do real e não coisas verdadeiras. O raciocínio é lógico: se o não-ser pode
ter alguma forma de existência, existe a possibilidade concreta de o falso aparecer na
determinação inadequada da relação entre o ser e o não-ser. Para comprovar essa tese, o
Estrangeiro investiga a constituição do discurso. O que parecia uma liberação da teoria do
ser do monismo recai no princípio da separação purista de onde Platão jamais se afastou.
Platão já havia definido o falso (pseudes) na República. O falso é pensado a partir
da mimese pictural. Homero é acusado de pronunciar falsos discursos sobre os seres. A
acusação volta como artilharia contra o sofista, suspeito de ser capaz de pronunciar uma
variedade sem fim de discursos enganadores. A teoria platônica do discurso é uma
aplicação da concepção do ser como comunicação de diferenças no domínio da linguagem.
O discurso (logos) tem origem na ligação recíproca das formas cujo potencial de
comunicação se manifesta na mistura de nomes e verbos. Não se trata simplesmente de um
arranjo sintático que nomeia cada um dos seres, mas de uma malha discursiva que tem o
poder de expressar o entrelaçamento dos seres através da ligação entre as palavras. O
discurso tem o poder de descobrir as coisas que se apresentam de uma forma determinada
na realidade. O ser e o discurso se correspondem, e todo discurso verdadeiro ou falso é um
enunciado sobre alguma coisa. Se o que diz o discurso coincide com a natureza da coisa
determinada, ele é um discurso verdadeiro (263b). Se o que diz o discurso não coincide
com a natureza da coisa determinada, ele é um discurso falso (263b). O discurso falso diz
em relação a alguma coisa coisas diferentes daquelas que são realmente. O sofista se
encontra no gênero dos prestidigitadores ou produtores de discursos falsos, porque diz que
o não-ser é o ser, ou que o outro do ser é o mesmo que o ser. O não-ser adquire um novo
significado na argumentação do Estrangeiro. Agora o não-ser não é o outro que está
113
simplesmente em relação com, mas o outro que é atribuído de forma equivocada ao ser. O
sofista propõe uma relação impossível, uma comunicação que rompe com o princípio da
identidade responsável pela conservação da unidade coerente do ser. A relação de
predicação estabelecida na determinação da existência pode ser considerada a origem do
discurso falso. A teoria das idéias se apóia num tipo de predicação em que o verbo "ser"
exerce a função de cópula entre um sujeito e um predicado. Um mesmo sujeito pode
receber vários predicados delimitados por critérios que ainda não estão definidos. A
definição do ser (ousia) anuncia nesses termos a longa dependência da lógica gramatical.
Um novo exemplo pode ajudar a expor melhor a questão. 1) Teeteto senta. 2)
Teeteto voa. A primeira alternativa é um discurso verdadeiro, o que pode ser comprovado a
partir da verificação de um fato concreto: Teeteto está assentado ante o Estrangeiro. O
discurso verdadeiro diz as coisas como elas realmente são. Caso Teeteto não estivesse
sentado, a assertiva seria certamente falsa. A segunda alternativa é concretamente um
discurso falso, porque o que enuncia não acontece na realidade: Teeteto não está voando
enquanto entretém uma conversa com o Estrangeiro. O discurso falso diz coisas que não
são como se elas realmente fossem. O discurso falso demonstra, portanto, ser uma má
apresentação dos seres, quando afirma a existência de coisas que não existem da forma
descrita. O discurso falso produz imagens faladas de todas as coisas com a finalidade de
fazer crer que o que é dito é verdadeiro e que aquele que fala é o mais sábio de todos.
Quem produz essas imagens é claramente um "mágico", um "imitador", um "jogador"
(235a). O critério de verdade nasce da correspondência entre o que se diz no discurso e o
ser que existe na realidade, de forma que o discurso verdadeiro pressupõe a adequação
entre a palavra e o ser. A diferenciação entre o discurso falso e o discurso verdadeiro
depende, portanto, dos atributos que estão em jogo, isso se torna evidente na definição do
114
sofista, pois a relação do falso com o verdadeiro ultrapassa os limites de um simples
fatualismo. A oposição de Platão aos sofistas é da ordem da determinação da verdade, da
realidade, da natureza. Quando afirma que o discurso falso atribui ao ser coisas diferentes
do que se pode reconhecer como próprias de sua natureza, está implícita a certeza de que é
possível conhecer os atributos verdadeiros do ser. Vale lembrar que Platão acredita ter
definido tanto a natureza do ser, quanto a realidade do não-ser. A definição encerra uma
disputa de conceitos que opta abertamente pela confrontação com o logos sofístico.
O discurso (logos) é um gênero entre os seres que pode ser dividido em pensamento
(dianoia), julgamento (doxa) e simulacro (phantasma) (264b). Este último é o sinal
evidente de um princípio de corrosão do discurso, assinalando a participação da dialética na
produção verbal de opiniões refratárias ao cálculo e à medida. Se o pensamento e o
julgamento podem separar o ser do não-ser e antecipar as comunicações possíveis entre os
gêneros, o simulacro torna impossível a determinação da verdade ao penetrar nos gêneros
do discurso, isso ocorre porque o pensamento e o julgamento promovem discursos falsos
sobre a natureza do ser. O ser se mistura de tal forma com o não-ser que fica difícil decidir
de que lado está a verdade na constituição do que cada coisa é. Na interpretação de Maria
Cristina Franco Ferraz, a relação estabelecida entre a sofística, a mimese e a retórica tem
por finalidade neutralizar a potência demiúrgica do logos sofístico:
No diálogo Teeteto, de Platão, Sócrates fala do logos sofístico enquanto tal, caracterizandoo como discurso que não diz o que é, mas faz ser aquilo que diz. Além de seu efeito
retórico, o discurso sofístico operaria, portanto, o que se poderia chamar de um efeitomundo, na medida em que fabricaria mundos, fazendo com que passassem a ser. O logos
sofístico se identificaria assim à poesia, no sentido etimológico do termo tal como Platão o
define: como operação que faz passar do não-ser ao ser (1999, p. 25).
115
A função poética do logos sofístico, capaz de engendrar a criação de realidades, é
resgatada na definição do discurso falso. Sonhos, sombras, imaginações, toda forma de
imagens falsas se mistura na formação de um discurso que busca determinar o ser. O
pensamento e o julgamento podem ser assim contaminados por uma matriz energética que
dispensa um grande potencial na criação de "efeitos-mundo". O discurso falso é um
simulacro, uma imagem verbal do não-ser que se apresenta como o ser, uma falsa imagem
verbal que se apresenta como uma verdadeira imagem da realidade. Para a teoria do ser,
tudo o que é, é alguma coisa determinada. Dizer a natureza do ser é enunciar uma presença
particular e concreta da realidade. Enunciar um discurso falso é, portanto, o mesmo que
enunciar um juízo ilusório sobre a realidade do ser. O discurso que insiste em promover
atributos falsos não só não alcança o ser, como também se torna suspeito de utilizar meios
fraudulentos com a finalidade de convencer sobre a realidade de uma relação impossível.
Só existe discurso falso ou verdadeiro sobre o que existe na realidade. A mimese
está assim condenada a dizer o falso, como o espelho a reproduzir a aparência das coisas.
Platão mostra que enunciar o que não é, é diferente de enunciar o nada ou nada. A definição
do não-ser como um outro em relação ao ser apresentava um novo paradigma para a
mimese. A mimese poderia ser definida como o outro do ser nos termos de Platão, um ser
que deseja promover a diferença como uma realidade que existe de alguma forma. No
entanto, a preferência pela definição do falso como um discurso enganador sobre a natureza
do ser não deixou Platão explorar os desdobramentos de uma tese tão fértil. Luiz Costa
Lima desenvolve o seguinte comentário sobre a relação entre a mimese e o não-ser:
Mas, se nos permitimos afastar o eixo principal da demonstração, que se funda na afirmação
de que o real é racional e inteligível, do eixo auxiliar, baseado no relacionamento entre
mimesis e não-ser, e destacamos este, teremos ocasião de captar a mais rica contribuição
116
platônica ao fenômeno da arte. Explicitamente: se suspendermos a idéia de que o não-ser é o
portador do falso e então afirmamos que ao não-ser, enquanto o Outro do ser, não cabem os
juízos reservados ao campo do ser – juízos sobre sua veracidade/falsidade – encontraremos
no postulado de que a mimesis se alimenta do não-ser a via capital para o conhecimento da
mimesis como ficção. Tomá-la como ficção significa dizer que ela não pode ser julgada pelo
mesmo critério com que se julgam os produtos pronunciadores do ser. Mas o fato é que o
próprio Platão elimina esta possibilidade aberta a seu pensamento, pois, no interior da
episteme clássica, [...], a physis se confunde com o inteligível e o inteligível não permite que
se empregue senão um único princípio" (1980, p. 43-44).
Platão só retorna ao problema da mimese para poder (des)qualificar a natureza do
sofista, evidenciando nesse gesto a falta de interesse em estabelecer uma teoria sobre a
mimese que contemplasse o fenômeno estético como um acontecimento específico.
Certamente não existe em sua obra a pretensão de investigar a mimese como um objeto
específico, o que faz com que a mimese apareça na argumentação como uma prova de
desqualificação dos adversários do filósofo. O poeta é transparente como o espelho que
reproduz tudo o que se encontra à sua volta. O rapsodo descende de Proteu, divindade
marítima que pode adquirir todas as formas para evitar que seja capturada e questionada. O
sofista é encerrado no gênero dos prestidigitadores e produtores de ilusões e enganos. A
investigação platônica acerca da mimese tem a forma de um jogo de equivalências em que
a reversibilidade dos juízos se torna um traço distintivo da argumentação do filósofo. O
poeta é um imitador de aparências ilusórias como o pintor; o pintor é um produtor de
imagens falsas como o sofista; o sofista não dispõe de um saber universal como o rapsodo;
o rapsodo está fora de si quando recita como o poeta quando compõe. Platão questiona a
legitimidade da mimese a partir desses personagens, ilustres representantes da face obscura
da arte mimética, o que reforça a necessidade de repensar a operação platônica que
determina uma posição inferior para a natureza da forma mimética.
117
4.3 A ÓTICA DO FALSO EM NIETZSCHE
A vontade de saber na teoria do conhecimento acolhida por Platão confere à vontade
de verdade o controle absoluto sobre a determinação do conhecimento verdadeiro. A
vontade de verdade é uma forma da vontade de poder, um impulso ao conhecimento do que
permanece a que o homem racional sacrifica sua existência. À medida que a ontologia
define a realidade natural da substância imutável do ser, a metafísica permanece nos limites
estreitos da verdade imutável. Se Platão colocou a dúvida no ponto de partida da dialética,
não foi propriamente para servir à incerteza ante a definição do conhecimento. Como em
Descartes, a dúvida é uma estratégia de reflexão da razão objetiva que serve à prescrição da
verdade natural. O projeto platônico é questionável em face de sua hierarquização de
valores. Por um lado, a tese de que a verdade é o que existe sempre do mesmo modo não
esconde sua dificuldade de compreender a grandeza das coisas que nascem e morrem
continuamente na realidade; por outro, o sistema de proposições que se apega com
obstinação à teoria do conhecimento com o objetivo de determinar de que lado está a
verdade é apenas uma forma de saber especulativo, uma construção teórica suscetível de
críticas quando novas formas de compreensão se instalam no horizonte do pensamento.
Platão pode ser criticado por confiar demais na razão objetiva e no seu critério de verdade,
uma vez que a dialética não consegue demonstrá-la sob a transparência da prova irrefutável.
A eleição da verdade imutável como princípio ordenador da teoria do conhecimento não
elimina os limites de toda interpretação do mundo em razão de sua própria natureza.
Nietzsche cultiva a desconfiança generalizada em relação a todo pensamento que se dedica
com louco entusiasmo a defender a causa da verdade, como se a verdade fosse uma criatura
tão inepta e inofensiva que sempre precisasse que paladinos recorressem em seu auxílio.
118
Como não há mais certezas imediatas na ordem da vida, o pensamento experimenta a
desconfiança dos esquemas de interpretação do mundo, o que não ocasiona a entrega
absoluta a uma nova espécie de ceticismo relativista, uma vez que o princípio da crítica se
define antes de tudo como uma estratégia para designar uma nova hierarquia de valores. A
dúvida em Nietzsche não é um simples método de demonstração da verdade, da qual nunca
se desconfiou com tanta convicção até sua aparição. O próprio desejo de demonstração da
verdade é algo em si suspeito, uma vez que não perde a confiança no processo de definição.
Certamente a desconfiança generalizada não assegura os sentidos mais consoladores,
contudo torna possível a descoberta de novos objetos que mudam continuamente de forma.
A crítica substancial à crença compulsiva na realidade do ser imutável impede que o
pensamento se encerre na ontologia que reparte o mundo em duas realidades opositivas.
O levantamento do tema da verdade em Nietzsche mostra o quanto sua interpretação
do mundo procurou afastar-se da teoria do conhecimento de inspiração platônica. No
"Prólogo" de Além do bem e do mal, Nietzsche propõe a seguinte analogia:
Supondo que a verdade seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de que todos os
filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a
terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade,
foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou
conquistar – e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo.
Se é que ainda está em pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que todo
dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas (2002, p. 7).
Embora a defesa da verdade não pudesse prescindir de alguma forma de vida para
que se efetivasse como uma perspectiva determinante da realidade existencial, foi
necessário que se sacrificasse grande parte da vida, senão a própria vida, na medida em que
o filósofo dogmático desqualificava toda realidade que não se adequasse à idéia que fazia
da verdade. O equívoco filosófico na interpretação da verdade se manifesta em sua
119
insistência compulsiva de contorná-la com o horizonte limitado do dogmatismo conceitual,
de forma que a crença absoluta na oposição metafísica de valores se estabeleça em solo
seguro. A revisão das construções teóricas de interpretação do mundo que supõem um
ponto de vista absoluto se presta sobretudo à desconstrução dos dogmas, palavra que tem
origem no verbo grego dokeo, que significa "crer, parecer, parecer bom". Originalmente o
dogma designa na cultura helênica a decisão política do soberano ou da assembléia
democrática, nesse caso dogma é uma opinião justa, um decreto de autoridade real que não
é passível de contradição, uma lei natural deliberada por uma instituição democrática. A
palavra "dogma" em sua longa história de vida penetra silenciosamente no domínio da
religião, da filosofia, da ciência, consubstanciando em cada campo a auto-suficiência da
verdade que se considera absoluta e se dirige a qualquer um em qualquer tempo e lugar sem
exceção. Do mesmo modo que a moral resiste à crítica revisionista, sobrevalorizando o
princípio de conservação da forma de vida privilegiada, o dogma anuncia que o que é certo
para um é bom para todo mundo. O fundamento mais sólido das aspirações dogmáticas
conserva o princípio de que sejam obedecidas por muito tempo e numa única direção. O
dogma é assim um princípio estabelecido universalmente, cuja verdade, filosófica,
científica, ou religiosa, não pode ser colocada sob suspeita, pois é uma forma intemporal,
uma realidade que se converte em carne e osso da existência. A análise do dogma revela
que existe um ponto de contato que estabelece uma relação de parentesco entre os sistemas
de sentido, para Nietzsche esse ponto se encontra na vontade de verdade que se compraz
com uma verdade superior em nome da qual se sacrifica a criação de novos valores.
Há doutrinas dogmáticas que envolvem o pensamento de tal forma numa série de
crenças fundadas na autocerteza da verdade que a liberação de seu campo de força demanda
uma grande quantidade de energia de que o espírito nem sempre dispõe quando requisitada.
120
Contudo, a despeito da resistência de algumas construções teóricas de apropriação da vida,
como alma imortal, sujeito uniforme, identidade coerente, certas apreciações de valor do
conhecimento hegemônico são freqüentemente confrontadas por mudanças inesperadas nas
diretrizes da cultura que servem de base à constituição de novos meios de existência. A
verdade intemporal é acusada de impostura, uma imposição humana alimentada por
perspectivas de apropriação da vida que asseguram a conservação de uma espécie. Quando
Nietzsche se interroga sobre a natureza do que em nós aspira ao conhecimento da verdade,
confere à desconfiança generalizada das crenças humanas a tarefa de investigar
cuidadosamente quem ou o quê em nós nos autoriza a confiar em oposições de valores,
como se fossem índices inquestionáveis da separação eficaz entre a essência e a aparência,
a verdade e a falsidade, a realidade e a ilusão... Pensar que o "determinado" é melhor que o
"indeterminado", que a "verdade" é melhor que a "falsidade", que o "bem" é melhor que o
"mal" não deriva de uma forma superior de razão, mas do princípio de conservação de uma
espécie de homem que triunfa quando se concede um sistema de sentido para habitar.
A perspectiva, condição básica de toda a vida, agencia a criação dos meios
necessários à existência. Como mostra Silvia Pimenta, a perspectiva não se constitui na
impossibilidade de conhecer a verdade, mas na inexistência da verdade substancial,
permanente, uniforme. “Pois dizer que todo conhecimento é perspectivo significa negar que
as coisas tenham uma essência, já que não há uma vontade divina para criá-la, um olhar
divino para contemplá-la, uma inteligência divina para pensá-la” (2003, p. 121-122). Basta
a iminente emergência do poder de ver de modo diverso se manifestar para haver a
promoção de interpretações diferentes e divergentes, o que torna impossível o
conhecimento puro, desinteressado, incondicionado, livre do ponto de vista da vontade, do
instinto, da vida que se transforma. Para o mundo em perspectiva não existem fatos em toda
121
a extensão da realidade, mas somente interpretações que se apropriam dos acontecimentos;
a vontade de verdade não descobre o sentido oculto das coisas, simplesmente introduz um
sentido na ordem da vida. Ora, desse ponto de vista, escreve Roberto Machado: “A vida
implica uma infinidade de interpretações, todas elas realizadas de uma perspectiva
particular”, portanto, “Interpretar é se tornar mestre de alguma coisa: dar forma, estruturar,
dominar” (2002, p. 94-95). Nietzsche reitera a idéia de que não existe conhecimento bem
fundamentado, nem verdade que detém uma existência em si própria, senão uma crença no
conhecimento verdadeiro, uma vontade de verdade essencial que nasce em condições
específicas. O conhecimento com suas inferências interpretativas, escolhas teóricas,
apreciações de valor condiciona uma série de perspectivas com as quais confere um sentido
ao mundo. São essas correlações de valor que esboçam uma realidade existencial, um
conhecimento instável que adquire a forma humana, infinita e imprópria como a evolução.
Se o homem um dia empreendesse a tarefa fenomenal de abolir completamente o "mundo
aparente" com suas apreciações de valor e avaliações de fachada, para que apenas pudesse
contar com o "mundo verdadeiro" livre das crenças e de suas convicções, restaria ante seu
campo de visão apenas um espaço caótico destituído de forma e sentido a ser contemplado
sem nenhuma objetividade, uma vez que a própria "verdade" é uma "aparência
perspectiva", isto é, uma interpretação que se apresenta como meio de existência da ordem
criada. Logo, questiona Nietzsche:
Sim, pois o que nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre verdadeiro e falso?
Não basta a suposição de graus de aparência, e como que sombras e tonalidades do
aparente, mais claras e mais escuras, – diferentes valeurs [valores], para usar a linguagem
dos pintores? Por que não poderia o mundo que nos concerne – ser uma ficção? E a quem
faz a pergunta: mas a ficção não requer um autor? – não se poderia replicar: Por quê? Esse
requer não pertenceria também à ficção? Não é permitido usar de alguma ironia em relação
ao sujeito, como em relação ao predicado e objeto? O filósofo não poderia se erguer acima
122
da credulidade na gramática? Todo o respeito às governantas: mas não seria tempo de a
filosofia abjurar da fé das governantas (2002, p. 41-42, § 34).
Quando Nietzsche condiciona a subversão da lógica gramatical à liberação do
domínio das governantas, afirma que as governantas influenciam na formação lingüística
das crianças, o que traz à tona o temor platônico com relação à influência dos mitos
narrados pelas amas às crianças antes que fossem conduzidas ao ginásio e recebessem uma
formação adequada. Além disso, Nietzsche reconhece nessa passagem a estrita dependência
da oposição metafísica de valores do meio gramatical, que confere à relação autônoma
entre sujeito e objeto do conhecimento um domínio privilegiado na definição da realidade
do ser como uma natureza incondicionada. Na filosofia nietzscheana, não somente o
atributo que é relacionado a um objeto, como o próprio sujeito que inaugura a relação de
sentido estão envolvidos pelo perspectivismo. Platão não ignora a força criativa da vontade
que traz ao mundo realidades que antes não faziam parte de sua constituição interna. Se
todo sentido tem origem na atividade interpretativa do homem, a evidência de verdade se
fundamenta num ponto de vista imanente à própria vida. O homem tem por hábito
denominar de verdade certas convicções de grande importância para a conservação de sua
vida. Daí a preferência por valores que se cristalizam em fórmulas lógicas não esconder sua
dependência do aspecto contingente das condições históricas de interpretação. Não deve
causar tanto estranhamento que homens com os mesmos princípios queiram coisas diversas
em épocas distintas, do mesmo modo que "O que uma época percebe como mau é
geralmente uma ressonância anacrônica daquilo que um dia foi considerado bom – o
atavismo de um antigo ideal" (2002, p. 79, § 149). Querer demonstrar a universalidade de
uma interpretação ou a objetividade de uma verdade nesse processo carrega consigo uma
123
profunda contradição, principalmente quando se considera que "Acerca do que é a
veracidade ninguém parece ter sido veraz o bastante" (2002, p. 83, § 177).
O conceito de verdade enquanto interpretação determinativa da existência depende
do quadro histórico das condições sociais de constituição do processo civilizatório, assim
não pode ser explicado por uma teoria da realidade objetiva que elege a imutabilidade da
essência como critério determinante da natureza das coisas. Graças a uma incoercível
desconfiança em relação à possibilidade do conhecimento bem fundado, a procura da
verdade precisa contar sempre com uma forma de ausência, como se a verdade que não
estivesse certa de si mesma desenvolvesse uma aversão a toda forma de determinação. A
crença na verdade é questionada no limite de seu valor por mais eminente que seja. É
preciso confrontar-se com a definição da verdade, uma vez que o conhecimento racional
não dispõe de um mínimo de ceticismo, deixando para o futuro a tarefa de fazer a crítica do
pensamento racional que se engana quando toma conjecturas por verdades essenciais.
Nietzsche percorre os meandros do problema em A genealogia da moral:
E aqui estou outra vez no meu problema, no nosso problema, oh! amigos desconhecidos!
(porque não conheço ainda nenhum amigo): que seria para nós a vida inteira se esta vontade
de verdade não tomasse em nós consciência de si mesma enquanto problema? A vontade de
verdade, uma vez que seja consciente de si mesma, será a morte do mal: é o espetáculo
grandioso reservado aos dois próximos séculos da história européia; espetáculo terrível
entre os terríveis, mas talvez fecundo de magníficas esperanças (1991, p. 112).
A verdade não é uma realidade em si mesma, mas uma crença, uma convicção da
vontade, uma construção do pensamento que imagina sistemas de sentido, compondo
correlações de pontos de vista diversamente eleitos, projetando-os sobre um mundo
indeterminado, ainda que Platão pense de outra forma e afirme freqüentemente o contrário.
A proposição precedente parte da suposição de que a verdade não se entrega de uma vez
124
por todas, a crença de que a verdade está elucidada é mais importante do que a definição da
verdade. Supondo que a verdade seja uma mulher, que a mulher sob as vestes é um corpo
sem fundos, que a mulher explora a mentira como arte da dissimulação, a verdade não
poderia mesmo contentar-se com a determinação de sua morada em meio ao que permanece
sempre da mesma forma, uma vez que se enreda num fluxo ininterrupto de estados
diferenciais. A procura insistente, ainda que se movimente nas sendas da razão objetiva,
não pode evitar que a verdade se afaste a cada passo arriscado em sua direção. O método
dialético anuncia que o caminho é longo e bastante acidentado. A demanda por alcançar a
verdade precisa contar sempre com uma forte resistência que apresenta em não querer
manifestar-se de vez. Ainda que o espírito dialético se entregue inteiramente ao
conhecimento da verdade, mais e mais problemas aparecem ante seu campo de visão. A
ausência de conquista definitiva evidencia o limite dos sistemas de sentido que desejam o
controle absoluto da vida.
A crítica da verdade tem por objetivo a avaliação de convicções que se conservam
no domínio da oposição metafísica de valores, não é possível fazer a crítica da verdade sem
considerar a relação intrínseca que estabelece com as apreciações de valor. Delimitar as
forças que estão envolvidas nos juízos de valor torna possível a confrontação dos signos da
plenitude de vida aos elementos da decadência da força vital. Se Nietzsche procura superar
os limites que impedem a formulação de outras perspectivas, é porque acredita na força da
vontade de criação que deseja ir além dos limites conhecidos, recusando-se dessa forma a
submeter-se à imposição de normas de conduta e maneiras de pensar. Para poder
estabelecer uma nova hierarquia de valores entre as perspectivas que fundam a moral, para
poder introduzir novos valores no mundo, Nietzsche precisa retornar à origem da
constituição da verdade que se encontra no interior do processo civilizatório. Somente
125
identificando os pólos inconciliáveis do conhecimento moral, explorando a fertilidade da
vontade de poder ser diferente do que se é, Nietzsche pode propor um novo sistema de
apreciação da vida como vontade de poder. A moral, como a verdade, é reconduzida à
vontade de poder, que define o modo de ser de todo vivente, instaurando e destruindo
sentidos, aspirando o devir como força que revigora a cada intervenção. O conceito, como o
valor, é uma realidade em perspectiva, o resultado de uma construção histórica que varia de
acordo com as condições de vida e finalidades de uma sociedade determinada. O estatuto
do conhecimento reside em sua capacidade de criar sentidos e instituir valores, o que
esclarece o motivo por que a distinção metafísica entre a verdade e a falsidade de um juízo
não é essencial para Nietzsche, uma vez que todo conhecimento é convencional, fictício,
imaginário e o mundo enquanto devir não pode ser fixado por nenhuma disposição
arbitrária do pensamento racional. “Se o conhecimento é errôneo, escreve Silvia Pimenta, é
porque impõe formas àquilo que é informe, leis àquilo que é caótico e submete à ilusão do
ser aquilo que não conhece outro estado senão o de devir” (2003, p. 97). Roberto Machado
atribui à suspeita sobre o valor dos valores o traço característico da filosofia nietzscheana,
de fato “Os valores não têm uma existência em si, não são uma realidade ontológica; são o
resultado de uma produção, de uma criação do homem: não são fatos, são interpretações
introduzidas pelo homem no mundo” (2002, p. 59-60). O perspectivismo é precisamente a
convergência e/ou divergência de apreciações de valor sobre um fenômeno. À medida que
os pontos de vista se acumulam sobre um objeto, mais veemente se torna a percepção de
que a natureza verdadeira é uma falácia do conhecimento. "Pois o mesmo sucede com o
conhecimento: uma vista, e se é dirigida pela vontade, veremos melhor, teremos mais
olhos, será mais completa nossa objetividade" (Nietzsche, 1991, p. 82). O perspectivismo
considera que os valores têm adversários, da mesma forma que as verdades quando
126
acolhem os impulsos contraditórios da vontade. Nesse sentido, é preciso ter a vontade
desperta para novas apropriações do mundo que até então permanecem desconhecidas do
horizonte do conhecimento humano. O instinto de liberdade que movimenta a vontade de
poder regula inconscientemente a arrancada inevitável em direção a novas apreciações de
valor. A valorização do instinto de liberdade é mais uma das estratégias adotadas por
Nietzsche com o objetivo de questionar o privilégio do sujeito, da consciência, da razão
objetiva na determinação da verdade de aspiração universal.
Com O anticristo, Nietzsche demonstra que a crítica à verdade dogmática é um
terreno ainda pouco explorado, o que constitui uma perigosa ameaça para a renovação da
tradição que conserva os juízos morais e transmite as leis da comunidade. Como a crítica à
verdade desenvolve a proposta de transvaloração de todos os valores, a avaliação daí
resultante acarreta uma reflexão sobre a vida como criação de valor. A "transmutação de
todos os valores", um dos subtítulos de O anticristo, não se restringe simplesmente à
inversão de valores dogmáticos herdados da metafísica dualista que habita ostensivamente
o pensamento religioso, filosófico e científico; apresenta-se também como a proposição de
novos valores que tornam possíveis outras vias de acesso à realidade existencial. A
transvaloração é subversiva e poética. A revisão crítica da moral cristã não se dirige tanto a
Cristo, como pode sugerir enganosamente o título do opúsculo, quanto ao que fizeram de
Cristo na determinação dos fundamentos da Igreja, purificando as “virtudes” e expurgando
os “vícios”, para que o cristianismo, negando o mundo e a vontade de nele viver, pudesse
desenvolver toda a sua hostilidade niilista em proveito de um além-mundo. O pensamento
religioso na medida em que identifica o conceito de verdade com a perspectiva moral
falsifica a definição da essência do mundo. Paulo foi um dos teólogos que mais se
dedicaram à tarefa compulsiva de desqualificar a realidade sensível a partir de um conceito
127
de verdade que não conhecia nenhuma incerteza em sua formação, daí a necessidade de
receber no Anticristo mais atenção na crítica dirigida aos primeiros cristãos. A avaliação
crítica inicialmente precisou demonstrar a íntima relação entre o conceito de verdade e a
perspectiva moral que subsiste na formulação originária do dogma. Nietzsche compreende
o cristianismo como um conjunto de ficções imaginárias que se autodenomina como uma
forma de verdade imutável em oposição à realidade transitória. O cristianismo não hesitou
em corromper a idéia de puro devir quando se declarou contra a indeterminação essencial
da existência, influenciando com suas crenças a formação de uma conspiração contra os
que pensam e agem de maneira diferente, de forma que pudesse domesticar os homens e
instalar uma comunidade que seguisse os costumes. A vontade de poder que está na base de
sua interpretação do mundo determinou a criação de dualismos de toda ordem, tendo por
efeito inevitável a redução da realidade a um conjunto de antinomias convencionais. O
defensor da verdade sabe que é indiferente que uma coisa seja verdadeira em si mesma, o
essencial é que seja tomada como verdade por um grande número de pessoas, a crença
hegemônica na verdade é o que conta de fato nesses casos. Por causa da convicção sem
limites na crença-verdade o homem reconhece apenas um aspecto da realidade. Se o
cristianismo é um platonismo para o povo, o platonismo é uma antecipação histórica de
cristianismo na versão dogmática. A analogia não se resume à simples inquietação de
alguém que não pode partilhar das idéias de seu tempo, nem pode contar com a
solidariedade de homens que ainda estão por chegar. Nietzsche pretende ir ainda mais longe
para desmascarar certos valores e mostrá-los tal como são na realidade – um dogma
colocado a serviço de desejos que querem converter-se em senhores absolutos da verdade
para que possam instaurar o regime do niilismo pessimista cuja forma mais conhecida
128
desqualifica tudo o que se transforma com o tempo.13 O dogma é, portanto, uma invenção
da vontade de poder, uma forma de falsificação da realidade, uma vez que somente o que
uma espécie deseja deve receber a aprovação do conhecimento verdadeiro. Nietzsche evita
toda forma de contaminação que habita o dogma, toda forma de niilismo que pode
aprisionar a vontade, encontra-se por isso sozinho a maior parte do tempo, embora em raros
momentos reconheça um amigo em meio a uma multidão de desconhecidos:
É necessário ainda dizer que, no Novo Testamento, não aparece senão uma só figura à qual
seja preciso honrar? Pilatos, o governador romano, não podia decidir-se a tomar a sério uma
questão de judeus; um judeu a mais ou a menos, que importa? A nobre ironia de um romano
ante o qual se fez um imprudente abuso da palavra verdade enriqueceu o Novo Testamento
com a única palavra que tenha valor, que é a sua crítica, o seu próprio aniquilamento: Que é
a verdade? (2004, p. 84-85).14
O risco de todo critério de verdade está em se contentar com uma única perspectiva
de apropriação da vida em detrimento de outras visões que acenam com a possibilidade de
enriquecer as relações estabelecidas entre os homens e as coisas. O perigo real de toda
avaliação dogmática é tomar uma só medida da realidade como único critério de verdade,
toda convicção que passa por realidade natural, revelação divina, é uma forma de engano.
Nietzsche observa que "As convicções são cárceres. Não vêem bastante longe, nem vêem
por baixo delas: para poder falar de valor e de não-valor, é preciso ver quinhentas
convicções por baixo de si, atrás de si..." (2004, p. 93, § 54). Um passo à frente acrescenta:
13
A análise da moral, assim como é desenvolvida na Genealogia, reconhece três formas de niilismo que agem
conjuntamente na criação de valores dogmáticos: o ressentimento, a má-consciência e o ideal ascético.
14
Pilatos dirigiu essa pergunta a Cristo momentos antes de sua condenação, quando este se identificou como
representante da própria verdade em sua presença. Na passagem narrada em Jo 18, 37-38, Pilatos se retirou do
recinto em que Cristo se encontrava antes que pudesse responder à pergunta, se é que iria fazê-lo realmente:
“Perguntou-lhe então Pilatos: És, portanto, rei? Respondeu Jesus: Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da
verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade, ouve a minha voz. Disse-lhe Pilatos: Que é a
verdade? Falando isso, saiu de novo, foi ter com os judeus, e disse-lhes: Não acho nele crime algum”.
Nietzsche já havia comentado a passagem do Novo Testamento em seu Zaratustra: “E verdade chama-se,
hoje, o que falou o pregador que saiu, ele mesmo, do meio do povinho, aquele singular santo e intercessor do
povinho que de si mesmo testemunhou: Eu sou a verdade” (2000, p. 312).
129
"Há já muito que fiz notar que as convicções são talvez inimigas mais perigosas da verdade
que as mentiras" (2004, p. 95, § 55). Quando o conceito de verdade se inclina ante a razão
objetiva em cujo castelo reina soberana a consciência dogmática que somente consegue
vislumbrar certos aspectos da realidade, o conhecimento se extravia do caminho mais
desejado pela vontade de verdade, nesse momento nada do que acredita ser a verdade
conserva um aspecto sequer de sua natureza essencial, pois a realidade informe se mantém
longe do alcance da convicção inflamada de certezas. Por conseguinte, a palavra "verdade"
deveria ser usada apenas no plural para que se evitasse o falseamento da realidade
desmedida, isto é, para que se evitasse fazer da realidade deveniente uma forma de engano
voluntário da consciência racional e do mundo completamente forjado no interior da
vontade de poder uma essência pura do espírito impassível. Nesse sentido, o cristianismo
dogmático, tal como se apresenta no Novo Testamento, pode ser considerado uma
falsificação da verdade. Para negar a vida que se confunde com o fluxo do devir, o
cristianismo inventou uma realidade que se conserva sempre da mesma forma; assim pôde
justificar sua existência, mas tornou a vida deveniente inaceitável como centro de
gravidade. Nietzsche lê o Novo Testamento com uma profunda reverência por tudo o que
nele é desqualificado por sua natureza sensível, como o olhar ante a realidade que aspira à
renovação da vida e se opõe ao princípio de conservação da verdade essencial.
Ao definir a vida como vontade de poder que se opõe ao limite imposto à criação,
Nietzsche encontra a base fundamental para o projeto de transvaloração de todos os valores.
A crítica do valor dos valores se contrapõe à sua separação radical, pois não existe na
perspectiva crítica, como deseja a metafísica dualista, uma oposição essencial entre os
valores conhecidos, visto que mesmo os valores mais inconciliáveis têm origem na mesma
matriz energética, a vontade de poder, força motriz da existência. Logo, é melhor medir o
130
valor de cada criação, como prevê o projeto de superação da metafísica de valores, para ter
acesso a novas formas de ser, o que se torna possível na alteração do princípio de avaliação,
como ocorre quando Nietzsche associa o conceito de verdade ao campo de ação do falso. A
importância que a noção de falso (pseudes) adquire em seu pensamento se mostra com mais
precisão quando se mede sua repercussão no interior do processo civilizatório. É preciso
esclarecer que o falso em Nietzsche não é determinado em seu sentido corrente, negativo, a
saber, "contrário à realidade ou à verdade", "inexato, sem fundamento", "em que há
mentira, fingimento, dolo", "que não é verdadeiro, fictício, enganoso", "que é feito à
semelhança ou imitação do verdadeiro", "aparente, enganoso", "mentira, calúnia,
falsidade", "o contrário de autêntico, legítimo, verdadeiro", de acordo com o Dicionário
Houaiss da língua portuguesa. O falso não é definido como uma quase realidade que não
possui fundamento necessário para constituir uma existência efetiva ao lado da verdade.
Nietzsche confere ao falso o título de realidade que possui uma base fundamental para
existir na medida em que concede à vida uma perspectiva, um sentido, uma finalidade. O
homem observa o mundo através de uma rede de esquemas apropriativos, como o sistema
lingüístico e a moralidade dos costumes, ambos sistemas de sentido que consagram
determinados critérios de verdade. O mundo resulta de uma construção em perspectiva,
porque o devir não dispõe de uma realidade essencial passível de ser fixada de uma vez por
todas, por isso toda perspectiva tem uma visão limitada:
A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez
nesse ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranha. A questão é em que medida ele
promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação
básica é afirmar que os juízos mais falsos (entre os quais os juízos sintéticos a priori) nos
são os mais indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a
realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem
não poderia viver – que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida, negar a vida.
Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de
131
maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo
se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal (2002, p.11-12, § 4).
Nietzsche constata que o falso é filho da vontade de criação que não distingue com
clareza a diferença entre "encontrar" e "inventar" a realidade das coisas. A vontade de
criação está tão habituada a imaginar um sentido para o mundo que, se fosse destituída da
força que a promove, se acharia vazia de uma existência mais rica e mais dinâmica. A
experiência que conhecemos à sombra das imaginações oníricas durante o sono noturno não
nos abandona quando somos expostos à luz da vigília no período diurno. A hipótese
confirma o estatuto do falso em Nietzsche – o conhecimento é uma ficção imaginária: "O
que fazemos em sonhos, fazemos acordados: inventamos e construímos a pessoa com quem
lidamos – para em seguida esquecer que assim fizemos" (2002, p. 78, § 138), logo "No
homem estão unidos criador e criatura: no homem há matéria, fragmento, abundância,
lodo, argila, absurdo, caos; mas no homem há também criador, escultor, dureza de martelo,
deus-espectador e sétimo dia – vocês entendem esta oposição?" (2002, p. 131-132, § 225).
A vontade de poder que introduz no objeto da ficção uma vontade do falso, como se
fosse a vontade de saber portadora de um conhecimento enganador, se opõe à vontade de
verdade que busca definir a natureza essencial das coisas. A vontade de saber confere ao
processo de criação de realidade um papel fundamental na definição da ficção que tem por
princípio fundamental uma potência ilimitada de criar formas e imprimir cunhos,
integrando o objeto de sua percepção num sistema funcional e dinâmico. A ficção imagina,
apresenta, explora o devir, como a vontade quer, deseja, aspira a realidade. Não constitui
um instrumento de representação do mundo dado, não tem a forma de um simples reflexo
do mundo sensível ou inteligível sempre predeterminado. O criador se reconhece na criação
imaginária, porém somente após a sua emergência ao mundo, pois antes o que existia era
132
uma quase realidade, uma espécie de caos sem forma, sem medida, sem conhecimento. O
ímpeto da vontade de se apropriar do que é estranho e desconhecido faz com que a vontade
de criação convencione que as coisas sejam deste ou daquele modo, assim a verdade pode
ser definida como uma expressão da força apropriativa da vontade de criação, uma força
que é simultaneamente modeladora e instaladora de formas. Ora, desse ponto de vista,
escreve Nietzsche em Assim falou Zaratustra: “Ter-se livrado da febre ainda está longe de
ser conhecimento! Não creio nos espíritos regelados. Quem não sabe mentir, não sabe o que
é a verdade” (2000, p. 339), como também em Aurora: “– Se procuramos observar o
espelho em si, nada descobrimos afinal, senão as coisas nele. Se queremos apreender as
coisas, nada alcançamos novamente, exceto o espelho. – Eis a história universal do
conhecimento” (2004, p. 169, § 243). Se as coisas adquirem essa forma no mundo em
perspectiva, o que se denomina simplesmente “realidade”, “verdade”, “conhecimento”
partilha do fundamento da ficção em que deuses, homens e sentidos são criados por uma
necessidade contingente. O homem tem uma atração inviolável pelo falso, por isso busca a
aparência imaginária da natureza que é mais uma forma de ficção instaladora.
Nietzsche recupera a potência afirmativa da ficção ao proceder à crítica da vontade
de verdade com sua ambição metafísica de atingir o fundamento essencial da realidade. O
mais incerto, o mais transitório, o mais contraditório intervêm em todos os processos da
vida quando participam de uma série de eventos de que não existe modelo preexistente.
Caso o homem não reconhecesse o valor positivo da ficção na ordem da vida, de que
maneira compensaria a falta de propriedade de uma natureza incompleta e indeterminada?
Sem medir a realidade com o mundo da ficção, o homem dificilmente poderia responder às
demandas da natureza que é hostil a toda abstração arbitrária do ser intemporal, de forma
que a ficção participa do ser e de tudo o que nele é poder ser vasto e múltiplo.
133
Desacreditando as divisões do platonismo que assinalam uma hierarquia de valores, a
exploração da ficção que percorre a verdade e da verdade que subsiste na ficção lança uma
perspectiva diferenciada sobre o modo de ser de cada vivente. O desejo de atingir a verdade
essencial sem nenhuma intromissão em sua constituição interna não reconhece os processos
que permeiam a produção do conhecimento ilusório. O conhecimento resulta do conflito de
forças instintivas que introduzem diferentes perspectivas num sistema de correlações. O
conhecimento, como a verdade, é antropomórfico (Machado, 2002, p. 102). Se retirássemos
as perspectivas que se combatem no interior do impulso ao conhecimento do campo de
ação da vontade de saber, o que sobraria do mundo em que sempre acreditamos? A crítica
da razão no domínio do conhecimento sinaliza o caminho, ainda que se bifurque em muitos
pontos, para a redistribuição da hierarquia entre a ficção e a verdade. Sem nos tornarmos
reféns da naturalidade que nunca põe em dúvida a tradição do costume, podemos proceder
de outro modo quando os dogmas se afirmam como verdade imutável. Somos bem mais
artistas do que Platão imaginava, e o fato não constitui um mal em si. A questão central é
saber em que medida a ficção amplia ou restringe o horizonte da vida, extingue ou cultiva a
existência das espécies, conserva ou renova os inúmeros afetos da vontade de poder. "O
problema que aqui apresento não é qual o lugar do homem na escala dos seres (o homem é
um fim), mas qual o tipo de homem que se deve criar, que se deve pretender, que tipo terá
mais valor, o mais digno de viver, mais seguro do futuro" (Nietzsche, 2004, p. 39). A
liberdade em dispor sobre as relações estabelecidas nas trocas intersubjetivas não pode ser
condicionada por um dogma que não é permeável à crítica. Não podemos afirmar uma
oposição fundamental entre a verdade e a ficção sem incorrermos na falsificação do mundo.
Sem reconhecermos o valor das perspectivas de apropriação, sem avaliarmos de outra
maneira os procedimentos da palavra ficcional, a cortina de sombras que se adensa na
134
caverna oferece ainda mais resistência à vontade de conhecer a verdade. Ao reconhecermos
a positividade da ficção, seja na ordem da ação política, seja no domínio da escrita poética,
a procura da verdade pode reavaliar o alto custo da lógica racional.
A longa desconfiança de um critério de verdade que sobrevaloriza as convicções
morais, forma de conhecimento que instaura convenções gregárias na hierarquia dos
costumes, desloca o conceito do ser como unidade, substância, permanência em direção à
formulação do devir como fluxo ininterrupto de estados diferenciais. O pensamento sobre a
verdade se torna nesse processo de mudança receptivo ao espólio de instabilização que o
fluxo do devir introduz na ordem da vida. Sem se fixar em determinações que simplificam
o complexo e rejeitam o inteiramente contraditório, a ficção explora perspectivas que
reivindicam a multiplicidade do mundo em transformação. A tarefa se fundamenta na
contínua revisão da verdade, pois lança profundas suspeitas sobre o valor de todo
conhecimento constituído, impedindo a transformação da ficção numa verdade essencial. A
crítica ao critério de verdade dominante na oposição metafísica de valores desperta o
sentido da ambigüidade. Não só o falso aparente tem o poder de enganar a razão objetiva,
como também a verdade essencial não passa de um conhecimento impreciso. Ora, a ficção
não deve ser considerada uma mentira sem nenhuma ressonância, como se fosse apenas
uma simples falsificação da verdade. Tanto a ficção, quanto a verdade levam ao erro
quando tentam determinar o que não pode ser determinado, conhecer o que não pode ser
conhecido, medir o que não pode ser medido. A vida em sua falta essencial de propriedade
recusa todo tipo de delimitação coercitiva por mais pontual que possa ser seu esforço de
contenção da natureza indeterminada da existência. “Heráclito sempre terá razão quanto ao
fato de que o Ser é uma ficção vazia. O mundo aparente é o único: o mundo verdadeiro é
apenas um mundo acrescentado de maneira mendaz...” (Nietzsche, 2000, p. 26).
135
Gustave Flaubert em A tentação de Santo Antônio imagina como seria o espírito de
um eremita que estivesse em litígio constante com o problema da verdade. Santo Antônio
segue o regime da dieta ascética em meio ao deserto africano com a esperança de que o
enigma da vida lhe seja revelado através de uma forma inviolável de verdade – a verdade
divina, por si mesma bela, justa e racional. No entanto, na escalada dos acontecimentos,
torna-se cada vez mais difícil distinguir a evidência da verdade superior em face dos
delírios que o arrebatam num fluxo vertiginoso de ilusões contraditórias e inconciliáveis.
Santo Antônio assiste ao cortejo de deuses das mais diversas procedências, reconhece
inúmeras doutrinas que alimentam interpretações divergentes, descobre-se profundamente
equivocado com relação ao conhecimento acerca da natureza do universo. O desejo de se
encontrar com a verdade uniforme se confronta com o pesadelo do conhecimento
enciclopédico. Santo Antônio descobre que a verdade pode ser mais uma ilusão da
consciência objetiva, de forma que é impossível não se extraviar da busca em meio às
oscilações da realidade que não existe fora das múltiplas apreciações de valor. Embora o
conhecimento da verdade e da mentira se processe como uma experiência tumultuada,
santo Antônio não abandona a crença de que a verdade possa ser finalmente encontrada, o
que não impede o enredamento progressivo na atmosfera de sonho que envolve a realidade.
Na visão de Flaubert “Nós temos mérito somente por nossa sede de verdade” (1967, p. 80).
A ficção literária não desconhece o esforço que demanda a conservação da verdade,
embora recuse a medida exaustiva quando acolhe o princípio de indeterminação da vida. A
ficção estética não se restringe ao conhecimento da verdade dogmática, colocando em risco
com esse gesto o pressuposto da identidade uniforme, a realidade que explora convive com
inúmeras formações identitárias talvez contra a própria vontade. A ficção poética antecipa a
instabilidade constitutiva da identidade fragmentária, na medida em que não se submete ao
136
regime da contrafacção sem ressonância, nem se ajusta a uma única forma de propriedade
subjetiva, tampouco se interdita a experiência instável da vontade de saber. A confabulação
das palavras não desconhece as artes de Proteu, que pode transformar-se em tudo porque
não tem nenhum caráter em si. A ficção é uma máscara. Com isso pretendo dizer que a
ficção é uma potência criadora, que não pode ser definida como a contradição da verdade,
quando, já o sublinhei mais de uma vez, se permite participar da elaboração do mundo em
devir tal como aparece ante seu campo de visão. Querer atribuir um sentido a uma palavra
cujo valor permanece ocultado pela tradição deve ser visto como parte do processo de
reavaliação dos conceitos de ficção e verdade. A máscara pode ser referenciada, como em
sua aparição no teatro antigo, à emergência de uma realidade paralela ao mundo conhecido.
A máscara está associada ao campo de ação da poiesis, no sentido que esta palavra recebeu
da antigüidade quando participa de uma atividade que torna possível a criação de formas,
colocando em questão a equivalência entre falsa aparência e ocultação da verdade. A
máscara não oculta pura e simplesmente a verdade; decide-se antes pelo questionamento do
que o conhecimento entende por verdade. “Mascarar” e “desmascarar” são atividades
pressupostas na configuração de máscaras que conhecem desde o seu nascimento o
problema da determinação da verdade. A máscara não é, portanto, a face sempre destituída
de realidade existencial, mas a outra face, a face diferente, a “anteface” ou a “antiface”. A
máscara é o emblema do disfarce, da reação contra a falta essencial de propriedade, cujo
processo de determinação torna evidente o confronto entre a verdade essencial e a ficção
aparente. Quando o ator veste a máscara no interior da representação, a plasticidade da sua
forma lhe confere uma propriedade, uma existência, um aspecto da realidade. Por trás da
máscara existem muitos disfarces e também uma astúcia – a astúcia de liberar um
fundamento de sentido, como no soneto “Baile de Máscaras” de José Régio:
137
Contínua tentativa fracassando,
Minha vida é uma série de atitudes.
Minhas rugas mais fundas que taludes,
Quantas máscaras, já, vos fui colando?
Mas sempre, atrás de Mim, me vou buscando
Meus verdadeiros vícios e virtudes.
(– E é a ver se te encontras, ou te iludes,
Que bailas nesse entrudo miserando...)
Encontrar-me? Iludir-me? ai que o não sei!
Sei mas é ter no rosto ensangüentado
O rol de quantas máscaras usei...
Mais me procuro, pois, mais vou errado.
E aos pés de Mim, um dia, eu cairei,
Como um vestido impuro e remendado!
(1985, p. 68).
O homem inventou a máscara para se dar uma natureza determinada, como se a
invenção não participasse de uma falta essencial de propriedade. Mais do que o emblema
do disfarce que oculta a verdade e da astúcia que reveste uma forma na realidade, a máscara
constitui uma certa vontade de engano que deseja determinar o indeterminado. A máscara
ficcional, compreendida como superfície superposta sobre outra superfície, está em
contradição com o princípio da profundidade fundamental da essência da verdade. A
propósito dessa questão Nietzsche observa com ironia que é próprio de uma humanidade
mais refinada desenvolver uma reverência ante a máscara (2002, p. 186, § 270). Como a
máscara confere uma aparência à realidade, formando uma perspectiva com os objetos,
permite um dispositivo de oposição ao conceito de verdade ontológica, denunciando a
falsidade do conhecimento desinteressado. A mulher está para a resistência da verdade em
permitir a definição essencialista da mesma forma que a máscara está para o mundo que
encontra na perspectiva um fundamento impróprio. O mundo em perspectiva demanda a
superposição de máscaras de forma que é impossível não suspeitar de uma opinião que seja
138
verdadeira e última e de que não haja "uma caverna ainda mais profunda por trás de cada
caverna – um mundo mais amplo, mais rico, mais estranho além da superfície, um abismo
atrás de cada chão, cada razão, por baixo de toda fundamentação" (2002, p. 193, § 289). A
máscara representa a desconfiança generalizada das convicções que percorrem o
conhecimento. Tanto o mundo, quanto o conhecimento, na ótica do falso, devem mudar
continuamente, como o fabuloso demônio do mar que tem o poder desconcertante de
assumir formas diferentes com a mesma astúcia e diversidade que a máscara apresenta
quando reúne todas as formas numa só, múltipla e variável como um espelho de cem faces.
A ficção poética é superior à ciência, à filosofia, à religião, sistemas de sentido
determinados pela metafísica, porque é capaz de proporcionar uma experiência mais rica da
existência, sobretudo quando supera o sonho da razão objetiva que controla os estados de
consciência na metafísica dualista. Como a ficção estética é o domínio por excelência da
aparência, cuja potência plástica é a força que mais participa da criação de perspectivas,
Nietzsche utiliza a lógica da aparência contra o privilégio da constituição da essência, e
descrente que era na certeza de uma verdade em si mesma, denuncia a pretensão infundada
da vontade de verdade embriagada de oposições abstratas. A ficção literária se encontra
mais próxima do núcleo emblemático da existência, porque não busca a verdade do lado da
realidade essencial, mas acolhe o domínio da aparência como uma imagem do mundo
verdadeiro, uma verdade afirmativa da ilusão, uma máscara repleta de realidade. A
aparência não é o contrário da essência, mas a própria realidade, ativa e viva na existência.
Se Nietzsche investe na reabilitação da ficção como estratégia de oposição à vontade de
verdade que somente conhece a verdade na ótica da conservação de um valor absoluto, é
porque identifica a proximidade entre a utilização da aparência no interior da forma
artística e a definição da vida como correlação de forças de apropriação do caos informe,
139
por isso não hesita em permanecer do lado da arte e deixar que a ficção possa com a
filosofia determinar o valor da ciência positiva como conhecimento indispensável à vida.
“Um dos grandes paradoxos da filosofia de Nietzsche é denunciar o que é tido como
verdade como sendo falsidade, sem com isso assumir um conceito de verdade como norma,
mas, ao contrário, afirmar que tudo é falso” (Machado, 2002, p. 104). Como a ficção não
contrapõe a verdade à mentira por se encontrar no domínio de superação da oposição
metafísica de valores, procedimento que Nietzsche utiliza quando pretende alcançar a
transvaloração de todos os valores, mas se apresenta talvez por necessidade como o
discurso que explora o sentido das apreciações de valor na formação da aparência em
perspectiva, a arte pode sustentar que o valor de um conhecimento introduzido no domínio
da cultura não depende do grau de verdade absoluta que intervém na realidade, mas do grau
de necessidade absoluta que representa para a existência da espécie. Explorar o desejo de
liberdade na criação de novos valores confere à ficção poética o estatuto de modelo para o
pensamento que investe na valorização da vontade de aparência. A vontade de verdade na
medida em que procura uma realidade que se conserva sempre da mesma forma é uma
impotência da vontade de criação na ótica da vontade de poder. Chegamos a um ponto em
que definir os conceitos de ficção e verdade como naturezas completamente distintas não
resiste à investigação de uma crítica mais rigorosa. Tanto a ficção, quanto a verdade têm
origem na vontade de criação. Se a tarefa parece penosa demais, não é tanto pela
impossibilidade de demarcação de uma diferença entre as partes, quanto pela necessidade
de alterar o princípio de avaliação que preside a criação de valores.
140
V
O SONHO DO SONHADOR
5.1 A CONFABULAÇÃO DAS PALAVRAS
Inicialmente sublinhei que a escolha da ficção de Bernardo Carvalho para fazer
parte do corpus deste trabalho respondia a uma questão formulada na ótica da atualidade, a
saber: como os conceitos de ficção e verdade estão sendo pensados na recente produção
literária? Na seqüência delimitava como contraponto teórico da questão o pensamento de
uma certa tradição filosófica que se dedicou à investigação dos conceitos de ficção e
verdade. Assim assinalava uma confluência de forças no amplo horizonte vislumbrado de
início, estabelecendo uma relação entre o passado e o presente mais recente. A freqüência
com que os conceitos de ficção e verdade retornam aos romances de Bernardo Carvalho
confere ao problema da investigação de seu domínio uma relevância que ultrapassa o limite
da narrativa de ficção desse escritor. A existência estética da literatura, determinada por
procedimentos e intenções específicos, não exclui a preocupação com a dimensão ética da
existência, determinada por condições sociais concretas e dinâmicas. Não é necessário
transformar a literatura em espelho das idéias imutáveis, como faz Platão ao privilegiar o
domínio da cópia sobre o simulacro, para que a ficção comprove seu comprometimento
com o mundo dos homens. A razão que fundamenta a condenação da ficção não resiste à
crítica da vontade de verdade que não ultrapassa o limite estreito da mimese reprodutiva. A
revisão dos conceitos de ficção e verdade na ótica do falso proposta por Nietzsche em seu
pensamento está presente na lógica interna dos romances de Bernardo Carvalho. Não se
trata de uma relação de dependência cultural, mas de uma afinidade definida por
perspectivas convergentes. As formulações seguintes, construídas sobre a base dos
141
romances de Bernardo Carvalho, não aportam numa plataforma vazia; ao contrário,
comunicam-se com as considerações anteriores, sendo na verdade desdobramentos da
matéria exposta até aqui. O momento é simultaneamente retrospectivo e prospectivo. O
ponto de partida é Onze: uma história, romance publicado em 1995.
A ficção de Bernardo Carvalho pode ser caracterizada como um jogo de
indeterminações, pois não há estabilidade na definição da identidade dos personagens, nem
mesmo transparência na determinação das regras que governam as relações estabelecidas
entre eles. O narrador estimula a desconfiança em relação à realidade dos fatos desde o
início da ação narrativa, de forma que a identificação do que se encontra no gesto de cada
personagem se torna tão incomensurável quanto o próprio jogo de esconde-esconde narrado
em Onze, “um jogo onde não se deve confiar em ninguém” (p. 14), pois nele não se sabe
quem está vivo ou quem está morto, como se a realidade das coisas não fosse passível de
determinação; “sem poder confiar em ninguém e cada vez menos com o decorrer do tempo”
(p. 15), a desconfiança é uma medida necessária para se demarcar uma perspectiva de
apropriação da realidade, onde um novo acontecimento pode a qualquer momento alterar a
posição de uma peça e transformar a natureza do sistema onde se encontra distribuída.
Embora o narrador possa antecipar a narração de uma história com bastante antecedência,
como ocorre com a história dos onze mortos no aeroporto de Paris, a narrativa que
estabelece apenas uma tênue conexão entre os acontecimentos, revelando com esse gesto o
esgotamento do princípio orgânico de verossimilhança, ainda consegue surpreender, não
tanto pela lógica da causalidade que preside a formação do enredo tradicional, quanto pela
ressonância que os acontecimentos alcançam na percepção da narração. Mesmo quando
prometemos de tudo duvidar, “porque assim tem que ser, assim tem sido há gerações e
142
gerações” (p. 170), há acontecimentos que não podemos prever, sinal infalível de execução
do indeterminado.
O problema da ficção está associado à própria indeterminação do jogo. A entrada no
campo de ação da ficção domina a segunda parte de Onze, “Os gritos do Rio de Janeiro”,
que narra a passagem de dois pintores estrangeiros pelo Brasil. Um dos pintores veio ao
Brasil em busca da vida que não conseguia encontrar em seu país, “certo de que seria sob as
condições mais adversas que ela se manifestaria com mais intensidade, em sua essência,
como dizia” (p. 58). O artista acolhe em sua oficina onze meninos da periferia do Rio de
Janeiro com deficiências de aprendizado decorrentes da inadaptação aos métodos
tradicionais de ensino para poderem auxiliar no processo de criação das telas. Logo que
Bernardo começa a fazer parte do grupo de crianças, torna-se o eleito entre os membros da
oficina. Bernardo possui uma estranha dislexia que o impede de ver os artigos definidos e a
conjunção aditiva, “o a e o o e o e”, cifra de sentido indeterminado que dá nome à história.
Bernardo confessa que sua relação com o pintor é marcada pela ambivalência de afetos,
afetos tão contraditórios e inconstantes que podem passar num instante da idealização do
artista à vontade de matá-lo, desejo talvez realizado depois que o pintor deixou a periferia.
Apenas o fato de possuir um grande talento para a imaginação já seria suficiente para
explicar o interesse que desperta no artista, cuja vinda ao Brasil foi determinada pelo
esgotamento de seus meios expressivos. Uma das séries de pinturas que alcançaram grande
repercussão nas exposições do artista contou com a participação decisiva de Bernardo.
Após pintar mais uma seqüência de quadros inspirada em Duas guerras, o artista associava
literatura e pintura no processo de criação das telas, Bernardo assinala com precisão a
ausência de representação dos estilhaços e do brilho das explosões nas figurações abstratas.
Logo o artista pegou uma faca, furou dois buracos numa tela e pediu que Bernardo pusesse
143
os olhos ali, a seguir as outras telas receberam dois furos na altura dos olhos das crianças:
“No último dia, cada um de nós foi colocado atrás de uma das telas, com os olhos grudados
nos dois buracos, e com os olhos brilhando como estilhaços de bombas, pequenas
explosões, vimos o artista dançar e cantar na nossa frente, no meio das telas” (p. 68).
Três hipóteses que envolvem o problema da ficção se combinam na narração dessa
história. O artista veio ao Brasil em busca de uma realidade em convulsão; como seus
meios de expressão estavam esgotados, necessitava de um intenso choque de realidade, o
que poderia ser conhecido na pior realidade que houvesse no mundo, como se a
convivência com a realidade mais extrema, a experiência crítica da guerra, “real” ou
“imaginária”, tornasse possível o conhecimento de essências mais profundas. A vida que
conhece a experiência da morte no limite da realidade de cada existência pode fornecer o
material elementar que será elaborado durante meses na produção das telas. O artista
procura esse material na vida da Baixada, se é que se pode chamar aquilo de vida, e na vida
conservada na literatura. Logo que começou a fazer parte da oficina, Bernardo pensou que
o artista queria utilizar apenas a força física do grupo, idéia que foi abandonada ao
descobrir que queria mais do que força de trabalho, seja porque “veio roubar o que não
tinha, o que não imaginava e chamava de vida só porque não era sua” (p. 59), seja porque a
experiência que estava perdendo era essencial para a sobrevivência de sua arte. Os olhos
interpostos com veemência nas telas representam o ideal estético de animação da arte.
Existe um mito no imaginário grego que narra a história de Pigmalião, escultor que se
apaixonou pela estátua de Vênus nascida de suas mãos. Embora a escultura apresentasse
uma beleza transfigurada, a ponto de seduzir completamente o desejo de um mortal,
faltava-lhe o sopro de vida essencial para que se tornasse um ser vivo entre outros. Ao
observar o sofrimento de Pigmalião ante uma paixão impossível, os deuses vivificaram a
144
estátua de barro, desde então Pigmalião vive com sua escultura, transformada com o sopro
de vida dos deuses imortais. O mito se fundamenta na idéia de que o processo que introduz
uma nova realidade na ordem da vida responde aos desígnios da vontade de criação que
intervém na constituição das coisas por meio de sua potência gerativa. Por querer dar vida
ao inanimado, plasmando o amorfo ainda caótico, a arte confere uma forma ao que é
informe, criando o mundo à sua maneira, modelando a realidade, como um escultor, a partir
de um caos sem medida. Pigmalião fez nascer da matéria informe uma estátua perfeita a
que os deuses deram vida. Mas os olhos no fundo das telas assinalam um outro sentido. A
função primordial dos olhos é a apresentação do mundo na forma da imagem, que é
codificação e decodificação da realidade em perspectivas multicoloridas. Se os olhos
captam a forma das coisas quando atribuem sentido à realidade dos seres, a arte identifica o
que acontece à sua volta, conhece o que no comum não se sabe, imagina o que não pode ser
conhecido. Os olhos da arte podem revelar a vida que os olhos comuns não vêem, porque
possuem uma visão de cem olhos que espreita a realidade em várias direções. Não deve
provocar espanto que o maior inimigo da mimese seja também quem descobriu seu
fundamento mais importante. Platão compara a mimese a um espelho que pode reproduzir
tudo o que se encontra à sua volta. Embora queira desqualificar a poesia como forma de
conhecimento quando introduz a mimese no domínio da imagem sensível, Platão identifica
a vontade de saber que impulsiona a ficção em direção ao que não pode ser conhecido de
uma vez por todas, não por acaso a arte é fonte de perspectivas diferenciadas sobre a
determinação do conhecimento verdadeiro. Platão reconhece a diferença interiorizada na
mimese como um risco para a definição do conhecimento essencial; desde que introduz a
diferença na ordem da existência, a mimese se opõe ao domínio do ser uniforme. Os olhos
são perspectivas divergentes que querem atribuir um sentido ao mundo a partir da força de
145
observação da realidade que conseguem sustentar cada vez que interpretam a natureza das
coisas. O que está em jogo nessa relação é o que a arte faz ver em sua forma, pois a força
da forma artística depende de sua capacidade de fazer ver o que se movimenta por trás da
determinação definitiva, ampliando o horizonte da percepção, remodelando o espaço da
consciência, redistribuindo a organização do conhecimento. O simbolismo da forma
estética pode ser um meio arriscado de exprimir a realidade das coisas, contudo pode ser
valorizado por tornar possível o acesso a um mundo que escapa à definição definitiva.
Não se pode, já o sublinhei em outro momento, contrapor a arte à vida, a ficção à
verdade, como se na realidade não houvesse o agenciamento de relações de sentido entre
elas. Se existe uma diferença passível de ser identificada entre os termos assinalados, deve
ser encontrada no protocolo de intenções de cada parte, na posição de cada perspectiva
engendrada na realidade, no modo de realização de cada experiência do conhecimento. A
participação da arte no campo do conhecimento pode ser destacada do pano de fundo dos
sistemas de sentido, de forma que a ficção possa ser compreendida como parte do processo
civilizatório, contanto que seja identificada como uma instância que explora a tensão
constitutiva entre a estrutura simbólica e a dinâmica da vida. O esforço por se conservar no
interior da tensão constitutiva das condições mais extremas assegura à ficção o potencial
subversivo que singulariza sua experiência de mundo. A busca do conflito intensificado é
um modo de acessar as formas complexas da existência, como também de se esquivar da
repetição das fórmulas estereotipadas do conhecimento. A arte que procura decifrar o modo
de ser das coisas como uma fotografia instantânea é tributária da vontade de saber que
deseja conhecer o que permanece desconhecido, a existência é definida nessa relação como
a busca de uma realidade que ultrapassa o limite da determinação definitiva, por isso deve
contar com alguma forma de engano que despreza todo princípio de certeza e permanência.
146
Sempre que a ficção se atribui uma forma crítica em meio à tensão constitutiva da
realidade, pode alcançar uma perspectiva mais “objetiva” sobre as coisas no sentido que
Nietzsche atribui a essa palavra, o que na ótica da história do artista corresponde a uma
visão da vida no extremo de si mesma. Bernardo Carvalho revela o desacordo que existe
entre o conhecimento e o mundo quando dissolve as figurações de seus romances em
acontecimentos de natureza indeterminada. A marca distintiva da narrativa do escritor é a
ambigüidade da forma simbólica, cuja força disjuntiva torna impossível a confiança na
trama dos acontecimentos que envolve os personagens numa teia de conflitos insolúveis. A
ficção não se contenta com a simples comunicação de um sentido, seja qual for sua
complexidade formativa, mas explora a experiência de constituição de um sentido que
fragmenta a percepção da realidade, como a experiência conflitiva que anuncia a todo
instante a insuficiência de todo princípio de verdade. A divisão interna que se processa em
diferentes níveis da existência é um fenômeno freqüente na ficção de Bernardo Carvalho,
logo pode ocorrer na nomeação do narrador, na construção de uma história, na aparição de
um personagem. Se a realidade é uma potência cambiante que não pode ser definida, cabe à
ficção mostrar o avesso da realidade. A dinâmica entre a realidade cambiante e a ficção
instabilizante permite a sensação de estranhamento; quanto mais o outro do determinado
esvazia a representação social, mais sua forma diferencial se destaca como singularidade.
A outra narrativa que compõe a segunda parte de Onze envolve a vinda de um pintor
holandês ao Brasil como resposta a um desafio proposto por um estudante brasileiro. Kill é
desafiado num evento de que participou como palestrante na cidade de Paris a demonstrar a
eficácia de seu processo criativo no verdadeiro país do dinheiro. Naquele dia o pintor
holandês não respondeu ao desafio que mais parecia o delírio de um jovem entusiasmado
com suas próprias idéias, situação que sofreria alteração alguns meses depois quando Kill
147
foi procurado em Londres pelo estudante brasileiro de história da arte. Seu desejo era
utilizar a aposta com o pintor como tema e ilustração de sua tese de doutorado que tentava
demonstrar a impotência da arte frente à supremacia absoluta da realidade. O essencial do
projeto artístico de Kill consistia em morar por alguns meses em diferentes países do
mundo para poder espalhar no mercado financeiro local cédulas de dinheiro desenhadas à
mão, cópias aparentemente idênticas aos modelos que o pintor encontrava à sua disposição.
O objetivo de Kill era fazer com que as notas falsas passassem por cédulas verdadeiras para
em seguida poder denunciar a impostura que protagonizava às autoridades locais. Kill
transformava em elemento significante de sua linguagem poética até mesmo o processo
judicial por que às vezes tinha de responder nos tribunais de apelação. A produção
artesanal, o pânico do mercado, o processo judicial que era gravado e exibido em museus
ao lado das notas falsas mostram que Kill buscava uma onipotência: “Era como se o mundo
que o envolvesse – ou por onde passassem as notas – fizesse parte do trabalho” (p. 85). O
estudante brasileiro queria demonstrar que a obra de Kill não tinha um alcance universal,
logo não teria nenhuma repercussão no Brasil, “onde o pintor não conseguiria nada, sua
obra seria insignificante, não teria nenhum efeito, seria varrido pela realidade” (p. 80),
contanto que a realidade fosse de fato mais forte que a arte como antecipava sua tese, sinal
do “anti-romantismo extremo” do desafiante brasileiro (p. 86).
Kill aceita o desafio e vem ao Brasil tentar demonstrar a eficácia universal de sua
arte. Caso conhecesse o sistema financeiro local, dificilmente teria aceitado o desafio. Kill
acabou descobrindo que a produção de notas falsas por um método artesanal, quase
renascentista, não poderia acompanhar o ritmo de um sistema financeiro dominado pela
cultura inflacionária. O pequeno prazo de vida do dinheiro numa economia corrompida por
natureza não possibilitava ao pintor o tempo necessário para que pudesse produzir cópias
148
mais aproximadas dos modelos que circulavam no mercado financeiro. De fato, quando
Kill conseguia inserir uma cópia em circulação, a cédula original já não valia mais nada,
contaminando a cédula falsa com sua desvalorização. Para adequar-se às novas exigências
da realidade cambiante, Kill teve que alterar o processo artesanal de fabricação das notas, o
que prejudicou profundamente a reprodução dos traços do dinheiro real, comprometendo a
inserção das cédulas no mercado financeiro, “aquela verossimilhança apenas superficial
mas suficiente para enganar os olhos distraídos e apressados dos consumidores” (p. 88).
Como era visível a falsificação das notas produzidas sem nenhuma atenção dedicada à
conservação do vínculo de semelhança com o modelo, as cédulas falsas eram ignoradas,
não tinham o menor efeito sobre a realidade. Ante o fracasso no país do dinheiro
corrompido pela cultura inflacionária, Kill acabou perdendo o controle da razão, e,
desnorteado, foi assassinado por Bernardo na periferia do Rio de Janeiro talvez por engano,
desde que entrara na oficina Bernardo desenvolvera uma profunda hostilidade pelo artista.
A história do verdadeiro país do dinheiro narrada por um crítico de arte interessado
no projeto artístico de Kill acrescenta algumas hipóteses à caracterização do espaço
ficcional. A produção de notas falsas associa evidentemente a ficção ao campo de ação do
falso; mas, se a cópia falsa pode passar pelo modelo verdadeiro, por que o modelo original
não poderia também passar pela cópia, quer dizer, ser uma impostura em relação à verdade?
O questionamento é instigador de uma desconfiança generalizada em relação às certezas
imediatas que determinam a constituição das formas estereotipadas de conhecimento. Mas a
cópia, como comenta o crítico de arte, nunca é de fato idêntica ao modelo, sobretudo
quando é intencionalmente produzida com signos que assinalam sua natureza divergente. A
realidade fornece os termos de referência necessários ao conhecimento que toma forma na
ficção, mas o sentido desse conhecimento depende do horizonte esboçado pela ficção. A
149
imaginação confere aos produtos imaginados a semelhança da realidade, o que remete à
possibilidade de comunicação sempre posta à prova na fronteira entre o mesmo e o outro.
Há um momento em que o próprio autor das notas reivindica o direito à diferença quando
nega a identidade absoluta entre a cópia e o modelo. O efeito do contraste descoberto entre
a cópia e o modelo demonstra como se processa a relação entre a ficção e a realidade – o
objeto estético deve ser recebido como é executado na estrutura simbólica dirigida. Desde o
início Kill tinha o interesse de se confrontar com a realidade, questionando seu critério de
verdade através da subversão das regras do sistema financeiro. Kill demorou a entender que
não poderia utilizar no Brasil os mesmos procedimentos praticados em outros países, uma
vez que um sistema financeiro naturalmente conturbado como o brasileiro não se ajustaria à
implantação do projeto destinado a países de economia estabilizada. A experiência que
desencadeou seu fracasso conheceu um sistema financeiro tão desnorteado por si mesmo
que demandava uma forma artística com procedimentos mais adequados a suas condições
materiais e relações sociais. A emergência histórica de novos acontecimentos revela a
possibilidade de a ficção participar dos processos em formação, como se a cada
transformação dos sistemas de sentido houvesse a necessidade de uma nova forma poética.
Que limite a arte tem por fronteira na formulação de uma realidade determinada?
Até que ponto a arte pode romper com o conceito de verossimilhança e recriar o mundo
com regras e lógicas próprias baseadas numa nova perspectiva de apropriação? Como a arte
que se distancia progressivamente da realidade conhecida em certa perspectiva com a
reapropriação de objetos da cultura interligados por representações sociais definidas pode
ser compreendida a partir de códigos conservados no interior do processo civilizatório? A
última questão permanece como hipótese viável do projeto artístico de Kill. É difícil
imaginar que um artista como Kill não tivesse percebido que as condições sociais do Brasil
150
exigiam uma nova perspectiva da forma artística. Sendo assim permanece no nível da
narrativa a necessidade de retomar o projeto artístico de Kill para compreender qual era de
fato o objetivo visado em seu processo criativo, ação que é empreendida pelo crítico de
arte, certo de que ainda existia algo por ser descoberto na obra do pintor holandês. Mesmo
na fase anterior à passagem pelo Brasil, existem hipóteses que ainda podem ser exploradas.
O projeto de Kill parece percorrer duas etapas: na primeira fase, Kill se dedicou à produção
de notas falsas que eram muito semelhantes às cédulas verdadeiras; na segunda fase, Kill
optou por produzir cópias falsas menos parecidas com os modelos conhecidos. A mudança
de perspectiva no processo criativo do pintor demonstrou que a pintura mais verossímil,
mimética no sentido reprodutivo, não encontrou dificuldade para ser aceita entre os
consumidores; já a pintura que adotava uma inverossimilhança progressiva em sua
configuração, mimética no sentido produtivo, não foi aceita uma única vez, pois os
consumidores e os homens da lei ignoraram as notas falsas, “Elas desapareciam no meio de
uma realidade muito mais veloz, quando não eram simplesmente recusadas” (p. 89).
Para Costa Lima a mimesis da representação reproduz um ser previamente
configurado na realidade enquanto a mimesis da produção produz uma dimensão do ser,
somente a oposição entre a representação do ser previamente constituído e a apresentação
de uma ordem determinada que não preexiste à criação pode resistir à ameaça sempre
presente de reduzir a arte à simples reprodução das representações sociais estabelecidas
(1980, p. 171). Se a mimese reprodutiva encarna o fantasma do realismo sociológico de
visão curta que retém a vontade de saber da mimese produtiva, o que favorece a
automatização da forma estética simultaneamente à padronização da realidade, a arte de
invenção pode explorar o que a arte de imitação não pode alcançar – o desconhecido, o
contraditório, o incompleto. Contra a retomada de uma visão conservadora da literatura
151
como um conjunto de normas de composição, uma forma de conhecimento que se restringe
à reprodução das representações sociais, Bernardo Carvalho faz suas apostas na arte de
invenção, desvio ou ruptura que dominou a produção artística ocidental por mais de um
século. A defesa da arte como a recriação constante do mundo, lição encontrada no
romancista austríaco Hermann Broch, direciona a criação artística rumo à definição de
novos parâmetros estéticos e éticos. Tanto a revisão das idéias dominantes no
conhecimento estabelecido, quanto o confronto com as formas estéticas da tradição são
atividades necessárias para que a ficção rompa com o cânone previamente constituído e se
aventure na procura pelo desconhecido. A arte que se recusa a satisfazer as demandas de
seu tempo representa uma ameaça à imitação, sua linguagem não representa o visível, mas
imagina o não visível. Ao contrário das instituições que dependem de consenso interno para
que possam ter uma atuação coerente na definição de uma identidade permanente, a arte de
invenção é uma forma de conhecimento que autoriza o questionamento permanente da
realidade na medida em que recusa a evidência do ser. O artifício ficcional é sempre um
meio de construção da verdade; quanto mais o artifício conseguir ampliar o horizonte da
consciência, estendendo a realidade em que as pessoas acreditam viver, maior será a
repercussão da arte na compreensão da realidade. O romance deve explorar toda riqueza de
sentido que uma nova forma pode suscitar na identificação de necessidades que contrariam
a percepção habitual, para assim evitar que a forma artística intensifique o estreitamento da
consciência já comprometida nas representações sociais. A reprodução da realidade tende a
perpetuar o conhecido, o culto da tradição impede que a realidade seja conhecida como o
devir que flui continuamente, em outras palavras:
152
O que o consenso neoconservador tenta promover nos Estados Unidos, com o respaldo do
mercado e dos lucros, e que tem desdobramentos inevitáveis entre escritores pouco originais
de países periféricos como o Brasil, é a celebração do produto em detrimento da criação.
Por ser inadequado em relação ao que se aprendeu a esperar de um romance, por se arriscar
numa procura pelo desconhecido, um livro é descartado como “chato” sem que se leve em
conta o fato de essa busca poder ser muito mais significativa do que o produto agradável
que somente reproduz as normas. Tudo poderia ser resumido a uma velha máxima citada
por Gaddis: “Sobre o que é seu livro, Mr. Joyce?” “Não é sobre alguma coisa, Madame, ele
é a coisa” (Carvalho, 2005, p. 27-28).
Aristóteles define a mimese a partir da noção de imitação como faz Platão antes
dele, porém a definição de imitação na Poética diverge bastante da definição na República,
o estatuto da verossimilhança em Aristóteles revela as diferenças mais importantes. A
noção de verossimilhança não determina como sugere a tradução latina de mimesis por
imitatio uma subordinação absoluta da arte aos pressupostos das representações sociais; ao
contrário, a noção de verossimilhança autoriza a pesquisa do conhecimento desde que as
conexões lógicas, necessárias, entre as ações da fábula assegurem a unidade de ação da
ficção engendrada. Assim o poeta trágico pode utilizar esteticamente a matéria-prima
fornecida pelo mito tradicional, não é necessário seguir à risca o conteúdo dos mitos, pois o
horizonte da verossimilhança lhe permite transformá-los através da sensibilidade e da
imaginação do pensamento especulativo. “Daqui claramente se segue, deduz Aristóteles,
que o poeta deve ser mais fabulador que versificador; porque ele é poeta pela imitação e
porque imita ações” (1451b27). A definição da fábula como um todo orgânico de alcance
universal constituído segundo a verossimilhança ou a necessidade dos acontecimentos
estruturados na ação dramática permite estabelecer uma diferença qualitativa entre duas
espécies de verossimilhança. A verossimilhança interna, fundamento que assegura a
percepção de conjunto da ação completa e de certa extensão na tragédia aristotélica, confere
à composição da fábula trágica a estrutura íntegra das espécies vivas (1450b34). A metáfora
do organismo vivo transplantada dos tratados de biologia para a investigação da arte
153
concebe a fábula como um organismo complexo composto de partes de tal forma
interligadas que a totalidade apresenta uma grandeza determinada, uma unidade coerente
onde as partes estão integradas num todo constituído de princípio, meio e fim (1450b26). A
composição orgânica é tão significativa para a existência da fábula que a mudança de uma
única parte essencial do todo modifica a estrutura do organismo inteiro. Logo, assim como
em biologia há um limite natural para o crescimento de todo organismo vivo, a fábula
possui um limite em sua progressão ascendente em direção à objetividade que está
condicionada à unidade de apreensão do conjunto. Somente uma estrutura que componha
um todo coerente e ordenado de elementos distribuídos na sucessão dos acontecimentos
naturalmente conectados pode causar o efeito corretivo da mimese. Se a verossimilhança
interna permite uma margem de liberdade na composição da ação dramática a partir da
organização da fábula, a verossimilhança externa não viabiliza os meios necessários para a
recriação constante do mundo por estar preocupada principalmente com a correspondência
direta entre a representação estética e a representação social, nesse caso quanto mais
semelhantes forem representação e realidade, mais próximas da verdade estarão as formas
de representação alcançadas.
Se a fábula é a alma da tragédia, a unidade de ação é a substância do drama
(1451a16). Como a natureza de uma espécie viva é o resultado de um progresso dirigido
por uma necessidade interna que caminha em direção a uma finalidade, a estrutura da
fábula é uma substância natural que se desenvolve em linha ascendente até atingir sua
própria natureza. Descrever a natureza da fábula é discernir a essência de um organismo
vivo, logo a fábula é uma espécie de universal, pois o universal é verossímil ou necessário
(1451b36). O necessário, como o verossímil, se opõe ao acidente imprevisível que não pode
ser conhecido; define-se antes como o que ocorre a maior parte do tempo, ou o que pode ser
154
conhecido através do agenciamento das ações no interior da fábula. Para alcançar a unidade
da verossimilhança interna, para que a trama das ações seja um todo uniforme, é preciso
que somente os eventos que tenham uma relação necessária participem da composição da
fábula. Os laços de verossimilhança ou necessidade são responsáveis pela unidade da
fábula que é constituída por estruturas dependentes das relações estabelecidas entre as
partes. Quando Homero compõe a Odisséia e deixa de narrar certos episódios da vida de
Ulisses, como o ter sido ferido no Monte Parnaso ou o simular-se louco no momento em
que se reuniu o exército em Áulis, não estava cometendo uma infração contra a verdade
histórica, mas definindo uma relação interna de verossimilhança e necessidade, relação que
seria perturbada caso narrasse todos os sucessos da vida de Ulisses. A infinidade de eventos
que ocorrem na vida de um homem não é objeto da mimese épica ou trágica, o essencial na
definição aristotélica da verossimilhança é que as ações contraiam uma relação necessária,
de forma que componham um organismo autônomo de partes interdependentes. A beleza de
um organismo vivo que pode facilmente ser apreendido em seu conjunto serve de modelo
para a extensão da composição da fábula. Um organismo é uma totalidade una e necessária,
uma unidade ordenada passível de ser objeto do conhecimento racional. Enquanto
agenciadora de uma trama de ações orgânicas, onde os acontecimentos constituem os fios
do destino irremissível, a mimese é uma forma de conhecimento capaz de compreender o
que se encontra afastado do campo da consciência, sobretudo porque investiga
acontecimentos que permaneceriam dispersos na realidade caso não fossem ordenados. A
poesia é superior à história, porque consegue fazer a transposição do particular ao
universal, por universal Aristóteles entende a revelação dos elementos essenciais que estão
presentes na trama dos acontecimentos encadeados na estrutura da fábula (1451b36).
Aristóteles atribui à mimese a revelação de uma verdade que transcende os fatos
155
particulares, de cuja ordem indeterminada e causa desconhecida o poeta alcança o
conhecimento universal que permaneceria escondido se não interviesse na realidade. Desde
as formas mais remotas de expressão a arte pretende alcançar a totalidade de seu tempo; o
retorno à narrativa mítica, como a organização da realidade histórica são estratégias do
processo de reiteração e desdobramento da procura pelo desconhecido. A revelação é
possível somente porque a fábula consegue transportar os elementos díspares e
descontínuos da realidade dos acontecimentos sem ligação necessária entre si para uma
totalidade orgânica integrada na unidade de um conjunto ordenado e necessário. Da mesma
maneira que a totalidade é uma unidade, o universal é uma espécie de totalidade. A mimese
estabelece dessa forma a mediação entre os múltiplos acontecimentos desconhecidos da
história humana e o princípio universal da natureza que habita a fábula a partir do momento
que a trama adquire a ordem coerente de um organismo vivo. A natureza pode ser o mundo
com todos os seus mecanismos, como a justiça com todas as suas leis. Mimetizar a natureza
numa forma verossímil equivaleria a explicar o conflito implícito no mito tradicional,
buscando uma solução para o problema apresentado na confabulação das ações particulares.
À medida que a mimese trágica procura reencontrar-se com as leis ocultas por trás dos
eventos particulares, pode exercer uma função corretiva dos acidentes que desequilibram a
organização da natureza. O fundamento da tragédia se encontra no conflito vertiginoso
entre paixões contraditórias e inconciliáveis; embora o conflito trágico demonstre que o
homem tem dificuldade de saber de que lado está a verdade, o conhecimento da natureza
das coisas pode ser alcançado mediante o prazer causado pela experiência estética.
O conceito de universal pode ser criticado na medida em que apenas reconhece a
validade do ser que tem uma forma bem acabada de existência. Do ser natural ao ser moral
Aristóteles determina a constituição das espécies vivas de acordo com princípios do
156
pensamento analítico que operam por meio de categorias, como meio, maneira e objeto.
Ademais, a intensa valorização da unidade de ação, como se fosse um universal que se
desenvolvesse segundo suas próprias leis, é extremamente dependente da lógica da
causalidade, que reduz a vontade dos personagens, dos homens, transformando-os em
meros fantoches do necessário encadeado na sucessão lógica de eventos. Os personagens
não devem agir por si mesmos, nem pensar segundo sua própria vontade, pois precisam
estar em perfeito acordo com a necessidade da ação universal e ontológica. Quando a
mimese persegue o liame de necessidade e verossimilhança na trama das ações bem
acabadas, buscando atingir a definição do contorno de personagens e realidades ajustados à
natureza de um organismo estruturado, disponibiliza os modelos que servirão de
fundamento para as ações particulares de cada cidadão no interior da comunidade política.
No entanto, a definição da mimese como uma forma de conhecimento válida por si mesma,
ainda que permaneça subordinada aos pressupostos do pensamento aristotélico, assinala a
potência de conhecimento da ficção desde a primeira reflexão sistemática sobre a arte. Em
Aristóteles a mimese é uma forma de conhecimento que não apenas permite o contato com
a natureza de uma realidade dispersa e descontínua, os infinitos acontecimentos da vida de
um homem que aparentemente não dispõem de propriedade definida, como também
constitui modelos que servem de paradigma para a organização da vida na cidade grega. O
universal se desprende do particular como num raciocínio indutivo, porque o poeta
consegue delimitar uma lógica interna para a série de acontecimentos sem conexão natural.
A unidade de ação permite a Aristóteles ultrapassar o dualismo platônico entre essência e
aparência, o particular caótico é transformado em universal absoluto. A mimese está,
portanto, para além da ciência e da filosofia, formas de conhecimento que têm por objeto
somente o universal em si mesmo, uma vez que a arte alcança por meio da elaboração
157
fabular do mito tradicional um conhecimento do acaso informe que não poderia ser
encontrado de outra maneira. Sem procurar estabelecer hierarquias entre as formas de
conhecimento, a literatura mostra que pode participar da determinação do conhecimento
quando se arrisca na definição da verdade indeterminada. Para Bernardo Carvalho “O novo,
no seu sentido mais complexo, significa uma mudança e uma ampliação da consciência”,
portanto “Não adianta repetir formas e modos de criação de uma mudança de consciência já
realizada”, o que desperta a necessidade de “determinação de novos valores para o que é
novo e para o que é arte” (2005, p. 154-155).
Pensar a intenção de um gesto artístico é fundamental para se compreender o
conhecimento de uma obra sobre uma realidade determinada. A arte não é um truque de
magia que impede o conhecimento da verdade, como diz Platão ao definir a mimese como
uma técnica do engano, nem uma simples reprodução da realidade que não modifica nada
do que está previamente constituído, como quer Platão ao designar um lugar para a mimese
no campo da representação, mas uma “pintura”, uma “fábula”, uma “escultura” que
intercepta a natureza, transmitindo um conhecimento sobre o mundo que não poderia
participar do campo do saber caso a arte não consumasse uma forma determinada. “Na
realidade, portanto, escreve Victor Goldschmidt em seu estudo sobre a Poética, a arte não
imita as coisas: ela as interpreta, e descobre sua causa para nós” (1982, p. 402). A recriação
constante do mundo pressupõe a reinterpretação permanente da história, assim o conflito
entre perspectivas anuncia uma longa guerra de valores que adia indefinidamente a
determinação do conhecimento. Se Platão expulsa os poetas da polis bem ordenada,
desqualificando seu conhecimento da verdade, Aristóteles os convoca de volta à cidade,
identificando na arte mimética uma função gnosiológica. Função gnosiológica e função
pedagógica se confundem na associação entre o prazer da contemplação do objeto estético
158
e o processo de aprendizagem de alguma coisa sobre a vida natural (1448b9). O interesse
da ficção na realidade se manifesta na necessidade de expressar a significação do mundo, a
mimese pode instruir o homem no conhecimento da realidade desde que esteja a serviço da
formação de uma sociedade mais sábia. Aristóteles invoca o poder transfigurador da
mimese para explicar o conhecimento que agencia da natureza, “Imitação é a palavra
aristotélica para exprimir o que os modernos chamariam transposição da realidade”
(Goldschmidt, 1982, p. 406). A fábula não é o mito tal como é descrito no imaginário
cultural, mas o mito transformado em estrutura orgânica, operação poética que caminha do
particular sem identidade ao universal com propriedade. Logo, o objeto de imitação não é a
infinidade de acontecimentos de uma natureza sem sentido aparente, mas a totalidade dos
acontecimentos que devem ser encadeados numa ordem lógica.
A obra pictórica discutida em Onze: uma história não está, portanto, desprovida de
uma vontade de saber, da mesma maneira que a narrativa de Bernardo Carvalho se envolve
com o conhecimento sobre o mundo. A transfiguração da realidade que absorve grande
parte das forças da ficção é uma forma de conhecimento que serve de questionamento do
valor das verdades para a constituição de outras perspectivas sobre o mundo. A grandeza da
arte reside tanto na apreensão do imediato em sua forma mais naturalizada, quanto na
negação das representações sociais previamente estabelecidas no processo civilizatório. A
gênese da arte pode ser buscada na confrontação com a realidade, “é justamente por não
poder vencer a realidade que a arte de verdade a desafia” (p. 86). Entender as linhas de
força dessa disputa que se enreda na realidade múltipla define o alcance da investigação
ficcional. A análise das aporias que concorrem no confronto com as representações sociais
mais contraditórias pode explicar a natureza da ficção como forma de conhecimento.
159
5.2 OS DESVIOS DA IMAGINAÇÃO
Bernardo Carvalho se encontra entre os escritores que se opõem à concepção de arte
como espelho da realidade. Sua obra pode ser considerada uma invectiva contra as teses
que subordinam a ficção à reprodução de um mundo previamente constituído. O mundo
estabelecido é combatido em sua aparente naturalidade, de forma que as representações
sociais sejam redimensionadas sempre que a vontade requerer novos fundamentos. Os
bêbados e os sonâmbulos conserva vários indícios da perspectiva do romancista em relação
à hegemonia do pensamento platônico na atribuição de uma posição secundária à mimese
na determinação do conhecimento da verdade. O romance descreve a experiência de um
estudante de medicina que abandonou a especialização em psiquiatria logo que descobriu a
presença de um tumor em seu cérebro. O progressivo crescimento do tumor pode causar a
perda total da memória individual com a formação de uma nova identidade apropriativa,
cuja natureza é capaz de transformar por completo o comportamento do estudante num
processo lento e imperceptível de metamorfose da natureza subjetiva. Ao saber que o tumor
não poderia ser operado – segundo o neurologista os estragos seriam ainda maiores no caso
de uma cirurgia –, o estudante decide procurar a testemunha do acidente de que fora vítima
quando criança, como também tornar-se aspirante para estar mais perto de um amigo de
infância, numa época em que ninguém mais pensava seguir a carreira militar. As medidas
têm por finalidade a conservação da memória cuja identidade corre o risco de entrar em
colapso assim que o processo de formação de outra identidade tenha sido iniciado. O
estudante, que narra sua história em primeira pessoa, desenvolve as causas do conflito:
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O neurologista me disse que o tumor não era tão grande – e provavelmente benigno – mas
que, embora de desenvolvimento muito lento (achava que seria como os meningiomas das
minhas tias), ia mudar, primeiro de forma mais imperceptível e depois radical, o meu
comportamento, a minha personalidade, sem que eu me desse conta; ia me transformar
numa outra pessoa antes de me matar. Não falou com essas palavras. Foi mais humano. Aos
poucos me tornaria um outro e o que eu era desapareceria – “por causa da lesão”. Seria
outra pessoa – mas o fato de não perceber a passagem, a mudança, talvez me ajudasse, uma
vez que passaria inconsciente por tudo, não lamentaria a perda de quem eu era –, ninguém é
ninguém, tudo é relativo, disse, basta um toque aqui (ele tocou a minha testa) e puf!, o que
você chama de eu some, e me abraçou de novo, na saída, diante do meu silêncio e da minha
consternação. Disse que não era assim tão grave. Podia levar anos. Era imponderável. A
alma é meramente fisiológica. Não foi ele que falou desse jeito. Fui eu que entendi assim (p.
14-15).
A tendência genética de desenvolver tumores dessa natureza torna irrealizável o
projeto de definição da identidade permanente. Uma vez que o estudante convive com a
ameaça constante de esquecer de si mesmo, todo acontecimento que se realiza no curso da
narrativa é colocado entre parênteses por uma suspeita inviolável que paira sobre a
realidade de cada coisa ser realmente o que parece ser. Se a realidade do ser pode sofrer
alterações significantes em sua forma conhecida, a possibilidade de ser confrontado com
uma cena imaginária (irreal), quando se pensa estar diante de um dado objetivo (real),
dilacera todo princípio de certeza. Um leve sinal desse descompasso ocorre logo no início
da narração, quando o psiquiatra iniciante se converte num aspirante militar, o que ainda
não constitui uma situação de grande conflito, já que o narrador está consciente do
processo. Se uma nova identidade apropriativa pode ocupar a cena principal, cresce o temor
do estudante de se tornar um desconhecido de si mesmo; o medo do desconhecido
manifesta a fragilidade ante o que escapa ao estabelecido e exige mais esforço para ser
compreendido. A mudança de identidade teria como conseqüência natural o esquecimento
de si mesmo, o desconhecimento do que significa uma memória determinativa de um
passado apreensível na forma de uma experiência de vida que tem consciência de todo o
percurso da existência. A mudança de identidade é um tema recorrente na narrativa de
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Bernardo Carvalho que evidencia a precariedade de um eu sem substância e sem limite. O
processo de reformulação está presente na interferência de conformações identitárias, como
no caso do empresário americano da indústria do papel que assume a identidade de um
psiquiatra, ou no esforço do arquiteto por incorporar a identidade de um executivo,
anulando-se por completo ao assimilar valores estranhos à sua personalidade, ou ainda nos
múltiplos disfarces do narrador que constituem identidades diversificadas. O narrador
materializa uma multiplicidade de papéis que se desdobram em outros personagens, assim a
reformulação da identidade dilacera todo fundamento cujos fragmentos constituem
acontecimentos de natureza reversível. Tanto a falta de nomes próprios, quanto a nomeação
por iniciais também são tributárias do processo de indefinição da identidade, como se o
nome fosse insuficiente para a construção de uma singularidade.
Assim como a mudança de identidade reforça a falta essencial de propriedade, a
confusão identitária evidencia a participação da imaginação na formação da realidade. A
imaginação é a instância responsável pela (re)definição de parâmetros existenciais, não só
participa da fundamentação dos seres, como também movimenta a constituição das ficções.
Num tempo em que a imaginação parece gozar de um prestígio cada vez menor, Bernardo
Carvalho, contrariando a automatização do imaginário através da mistificação da indústria
cultural, atribui à imaginação uma função deliberativa na formação de um regime de
sentido em que cada palavra se desvia de si mesma, cada personagem se desdobra em outra
personalidade, cada história se distancia de seu estado mais determinado, sem esquecer que
a obra de imaginação se apropria de elementos da realidade como um desdobramento das
representações sociais dos sistemas de sentido fixados no processo civilizatório. Bernardo
Carvalho sabe que o homem é incompleto, da mesma maneira que o conhecimento é
inacabado, por isso fundamenta um regime de sentido em que a destruição dos referentes
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partilhados socialmente não reconduz algo desconhecido a algo previamente conhecido.
Conceder espaço à imaginação é fundamental quando se pretende introduzir a consciência
da ambigüidade na interpretação dos acontecimentos. Citando uma aula de Nabokov,
Bernardo Carvalho lembra como ocorre o processo criativo na obra de imaginação:
A literatura não nasceu no dia em que um menino gritando “lobo!, lobo!” veio correndo do
vale de Neandertal com um grande lobo cinzento no seu encalço: a literatura nasceu no dia
em que um menino veio gritando “lobo!, lobo!” e não havia lobo nenhum atrás dele. [...]
Literatura é invenção. Ficção é ficção. Chamar uma história de história verídica é um
insulto tanto à arte quanto à verdade (1995, p. 123).
A imaginação opera por meio de associações variadas, configurando um sistema
regulado por estruturas que fundamentam uma lógica em que cada ser pode ser um outro
ser. Trata-se, portanto, do resultado de uma escolha entre variáveis diversas, uma seleção
conduzida por um plano de sentido que opta pelo descompasso entre referentes que se
contrapõem. Como fragmentos dispersos o psiquiatra repatriado do Chile inventa diversos
relatos clínicos que mais parecem pequenas fábulas sem sentido determinado, não por
acaso esses relatos tratam de imposturas que conduzem a consciência a desvios inevitáveis.
A troca de papéis que envolve a substituição de uma realidade por outra singularidade é um
procedimento que desfigura os acontecimentos, incorrendo em diversas contradições que
interferem na identificação de uma realidade determinada. Bernardo Carvalho subordina a
criação de personagens à necessidade de demonstrar o reverso da confabulação de histórias
enredada na substituição de identidades. O processo é desdobrável no tempo e no espaço.
Personagens que aparecem numa parte reaparecem num espaço desconhecido, situações
existenciais são rechaçadas, reforçadas, deslocadas, a ficção adquire a forma de uma
experiência sem unidade determinável. As referências se dispersam no fluxo e refluxo dos
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acontecimentos em descompasso crescente, vislumbra-se assim um quebra-cabeça onde as
peças não se encaixam inicialmente. Há relações de parentesco entre personagens,
contextos e histórias; contudo nenhuma identificação é absoluta, nenhuma localização é
inteiramente confiável, algum acontecimento inesperado sempre escapa da determinação.
Ao mesmo tempo que o retorno de uma situação narrativa favorece a observação de novos
traços referenciais, os personagens se dispersam ante a confrontação com informações
divergentes e suspeitas que não favorecem a conexão absoluta entre todos os segmentos da
narrativa, o que revela o esgotamento do princípio de verossimilhança ou necessidade. O
desdobramento de identidades com a sobreposição de realidades somente aumenta o
horizonte de ação do acaso, tornando impossível a definição de um referencial seguro.
Embora o processo perca força à medida que a narrativa se reencontra com o enredo linear,
convertendo o inverossímil em verossímil como quer Costa Lima (2002, p. 276), é inegável
que a realidade conhece uma existência que contém lacunas em sua natureza essencial:
enquanto uma identidade serve de fundamento a uma realidade existencial, outra
singularidade se prepara para emergir em outro plano da existência. Caso o processo de
reiteração e desdobramento de situações existenciais não se desgastasse com a repetição
indiscriminada, poder-se-ia esperar que outras realidades fossem confrontadas às anteriores;
assim um personagem se transformaria em outro, de uma história nasceria outra, em cada
narrativa ocorreria o encontro com um mundo mais vasto e mais amplo, infinitamente,
como um labirinto interminável que crescesse em todas as direções, incessantemente.
A ficção promove um pacto que torna possível o agenciamento de um sentido na
leitura. Há uma instância narrativa que se predispõe a contar uma história que recebe os
créditos de quem está lendo o texto proposto como sistema de signos organizados. Os
recursos utilizados na conquista da audiência são determinantes na definição de um sentido,
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de certa forma o papel do leitor é acreditar sempre por mais inverossímil que pareça a
narrativa, acreditar é organizar um quadro de referências para interpretar um mapa com
indicações. Mas os escritores não pensam da mesma forma quando se trata de definir o
estatuto do pacto de leitura. Cervantes criticava as novelas de cavalaria por comprometerem
seriamente a relação de confiabilidade entre a estória narrada e a história acontecida. O
Dom Quixote é uma paródia das narrativas que desconhecem o conceito de verossimilhança
externa, definido no limite da experiência conhecida e registrada nas representações sociais.
Bernardo Carvalho não confia plenamente no princípio de verossimilhança ou necessidade,
nem mesmo a verossimilhança interna tem seu espaço assegurado, visto que vive confinada
por uma série de interdições derivadas da superposição de acontecimentos reversíveis. O
romance não tem uma forma bem acabada, como se nada pudesse ser concluído na natureza
dos seres; o que prevalece na composição é o privilégio da confabulação de histórias por
meio da configuração de uma substância imaginária tão plástica quanto Proteu. O narrador
de “A brasileira”, quarto capítulo da 1ª parte de Os bêbados e os sonâmbulos, expõe o
conceito de ficção que fundamenta o processo criativo numa narrativa auto-referencial.
Para contar a história da brasileira, mulher do empresário americano da indústria do papel
que adotou a identidade de um psiquiatra no sul do Chile, é preciso que o narrador imagine
toda uma série de acontecimentos que ocorreram entre dois intervalos de tempo: a chegada
da brasileira num dia de verão, na cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos, e a chegada,
cinco anos depois, do aspirante com a carta do marido de Elena Finkelstone:
O que aconteceu naquele dia foi ao mesmo tempo simples e inacreditável – e, a princípio,
incompatível, pelo menos para mim, que voltava de bicicleta –, quando ela saiu da casa para
falar com o homem, o morto, com a mão sobre os olhos para proteger-se do sol, e ele lhe
entregou um envelope. Ela nunca saía. Para mim, era como se aquela fosse a segunda vez
em anos, desde que chegou num dia de verão, num carro azul. Vi as duas cenas, ao
contrário de muita gente que nunca nem chegou a vê-la, embora não possam viver sem
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repetir a história sempre que passam diante da casa da esquina, agora que está vazia de
novo. Da primeira vez, eu tinha dez anos, e vi quando desceu do carro com aquela peruca
loura, os óculos escuros e a calça de couro preta, que diziam na rua ser uma camuflagem,
embora hoje ninguém mais se lembre. Vi as duas vezes em que apareceu fora da casa, ao
sol, com um intervalo de cinco anos. Primeiro quando chegou, depois no dia em que surgiu
aquele sujeito, o morto, e os outros, que procuravam um quadro. Tentei dar um sentido ao
que vi. Mas só vi as duas cenas, o que é pouco, eu concordo, o resto é uma mistura do que
imaginei e do que me contaram depois. Quanto menos falar dela, melhor. Porque de
qualquer jeito não há o que dizer. Tudo está agora na minha cabeça. Por mais que eles
procurem, não vão encontrar nada. Está tudo na minha cabeça. Ninguém vai responder aos
apelos no rádio (p. 94-95).
A realidade existencial não é o domínio pleno das coisas acabadas e conhecidas,
logo cabe à imaginação expandir os limites da experiência. É precisamente o que faz o
narrador, a “testemunha” de uma realidade que ainda não existe, que está na iminência de
adquirir uma forma com a intervenção da imaginação. Entre as duas visões há um espaço
vazio que é preenchido vorazmente, da mesma forma que o leitor busca atribuir um sentido
à história. O narrador não camufla o caráter fictício de sua narrativa, a representação se
torna tema da narração, ela se assume como representação, assinalando de que lado pode
ser encontrada na definição de uma perspectiva sobre a ficção. A repetição progressiva do
verbo “imaginar” numa série de conexões que repercutem na formação de um sentido
modela a substância imaginária que se prolonga sinuosamente da realidade conhecida à
ficção imaginada: “Imagino que tenha descido do avião por uma escada no meio da pista”
(p. 95), “Imagino que tenha caminhado com os outros passageiros, do avião até um ônibus
que os esperava com as portas abertas” (p. 96), “Quis abraçá-la por compaixão, ele me
disse, mas ela se afastou, não por desprezo, talvez, mas por amor-próprio, por um tipo de
orgulho, eu imagino” (p. 97). A narração de uma história é feita de um emaranhado de
acontecimentos; o que se desconhece na realidade por escapar ao domínio da existência é
articulado imaginariamente; arquiteturas, mitologias, seres imaginários, significantes de
toda espécie ocupam um segmento determinado na realidade fictícia na medida em que a
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figuração imaginária recebe uma forma na narrativa. Definitivamente a ficção não é um
reflexo crepuscular de um mundo acima de toda desconfiança, mas uma confabulação
imaginária que pode introduzir novos objetos na realidade, objetos que são animados por
uma interpretação idealista, como ocorre em O falso mentiroso: memórias, de Silviano
Santiago. O romance mostra como a reconstituição da memória de uma experiência de vida
corriqueira pode ser influenciada pela imaginação especulativa quando a propriedade
essencial da identidade se afasta do campo da determinação definitiva. À medida que
aumenta a participação da imaginação na definição da ficção, a realidade constituída recua
enquanto parâmetro de referência dominante. Silviano Santiago se declara a favor de que
algo extranatural seja acrescentado ao objeto da realidade conhecida para que suas
imperfeições naturais sejam corrigidas por meio da imaginação desviante. Como Édipo, o
narrador de O falso mentiroso não conhece as circunstâncias de seu nascimento. A obsessão
em torno dessas circunstâncias faz com que experimente identidades como se trocasse de
roupa, preferência que está na base do processo criativo de seus quadros, cópias de peças
incorporadas ao cânone da história da arte, uma vez que defende a reprodução de estilos
diferentes para pôr em questão a identidade apropriativa, como também a originalidade
artística da obra de imaginação: “Só eu sei o que é ter personalidade zero. Só eu sei o que é
ter cegueira falsa, a que constrói a verdade das minhas personalidades postiças. Foram
milhares. E ainda são” (Santiago, 2004, p. 141).
O espaço da ficção não se diferencia do estado da loucura que expõe o avesso da
realidade. O psiquiatra louco que erra sem destino certo no sul do Chile, como a brasileira
sonâmbula perdida nas rotas desconhecidas do continente americano revelam que a loucura
é um sinal de inadaptação ao curso “natural” das coisas, uma espécie de antítese da vida em
seu estado “natural” que expõe a fragilidade das convenções estabelecidas. Quando o
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estado de loucura desfigura a natureza das representações sociais, a realidade permanece à
beira de um abismo onde um vazio avança deixando um rastro de destruição. Talvez por ser
naturalmente desajustada aos sistemas de sentido dominantes, seja qual for seu fundamento
racional, a loucura gere tanto temor entre os agentes de controle que estão preparados para
agir contra toda perturbação dos costumes tradicionais. Platão não consentia nenhum
espaço à loucura dentro do sistema mais apropriado em sua visão ao gerenciamento da vida
no interior da ordem universal. Nietzsche se revela um inimigo declarado da ambição
metafísica da razão ordenadora; interessado na confrontação de perspectivas diferentes e
divergentes, não aceita os pressupostos da verdade universal antes de contestar sua
fundamentação circunstanciada: “em quase toda parte, é a loucura que abre alas para a nova
idéia, que quebra o encanto de um uso e uma superstição venerados” (2004, p. 21, § 14).
Bernardo Carvalho apresenta a loucura como uma experiência que se estende da ameaça de
alteração da identidade apropriativa à alienação do sujeito de uma forma de existência. O
confronto com a determinação da propriedade está presente desde o título do romance em
observação, em que o controle da consciência deixa de ser o elemento determinante dos
acontecimentos para dar lugar à confabulação imaginária de realidades desconhecidas.
Tanto o estado de embriaguez, quanto o estado de inconsciência criam uma atmosfera de
indefinição na narrativa; certos de que tudo não é senão um caos prestes a frustrar todo
desejo de ordem, despertam a consciência da ambigüidade. A abertura do horizonte de
formação da identidade, como se a realidade estivesse à espera de um novo acontecimento,
está representada no terremoto ocorrido em Los Angeles que trouxe o psiquiatra de volta à
realidade dos homens no dia seguinte ao abalo sísmico. O terremoto é a manifestação
geográfica da loucura. Assim como o terremoto movimenta as placas tectônicas no interior
da crosta terrestre, fazendo saltar à superfície formas estranhas que alteram a paisagem
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natural, a loucura abala os pilares formativos da identidade apropriativa, confrontando os
referenciais orientadores com estados fora do circuito da experiência conhecida. A
atividade vulcânica produz uma configuração geográfica desnorteante, manifesta um estado
de loucura em que a falta de sentido adia a determinação de uma relação de confiança, o
que aumenta a sensação de que alguma coisa permanece fora do lugar na realidade:
Me lembrei do que tinha lido no guia: “A placa submarina de Nazca, que penetra sob a
crosta continental, se incrusta no manto e começa a derreter-se. O material candente emerge
pelas fissuras da crosta e produz a cadeia de vulcões. Quando as placas se roçam produzem
tensões que, ao se liberar, resultam em movimentos sísmicos. Os tremores e terremotos são,
assim, ajustes das tensões produzidas pela pressão entre as placas. Quando há um terremoto
é comum que os vulcões entrem em erupção. Eles formam uma cadeia linear, paralela à
linha de choque entre a placa de Nazca e o continente sul-americano. Essa cadeia vulcânica
forma parte do amplo arco de choque entre placas, chamado de ‘cinturão de fogo do
Pacífico’ e que se estende ao largo de todo o continente norte e sul-americano” (p. 48).
A loucura é um abalo sísmico que eclode no interior da ordem homogênea, uma
explosão capaz de confrontar a formação da aparência natural, por isso não deve causar
espanto que seja considerada uma insinuação do mal no interior dos sistemas de sentido
dominantes. Policiais, médicos, políticos, os agentes responsáveis pela ordem temem o
efeito desagregador que acompanha o estado de demência. A loucura se manifesta no fim
do mundo, no extremo sul do continente americano, com o nada ou quase nada à espera de
enfrentamento, de uma resposta que arrisque um sentido. Como um sinal do que pode
existir sob a superfície das coisas, um mundo perdido, um animal que hiberna
silenciosamente, um pico nevado que de repente se ergue no horizonte, a loucura impõe um
elemento desconhecido à realidade. Mas o que fazer diante de uma forma estranha cuja
realidade permanece desconhecida como um enigma que desafia o conhecimento? A
loucura resvala em ficções toda vez que entra em contradição com o mundo conhecido e
propõe a supressão da realidade por meio da formação de uma ordem significativa. A
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loucura torna possível o confronto com o descontrole e o desconhecido, uma falta de
sentido que surge do nada sem razões aparentes, demonstrando uma postura cética em
relação à propriedade identitária, como se o sentido escapasse ao círculo da verdade. Do
mesmo modo que a loucura impõe uma série de dúvidas em relação ao sentido de sua
manifestação geográfica, a narrativa ficcional coloca a representação em evidência,
determinando a indagação do sentido de uma história aparentemente sem sentido algum. A
manifestação de uma figuração inconsciente revela a fragmentação de referentes que causa
a divisão da realidade em diversos níveis significantes. Reunir os signos que se desdobram
repentinamente uns dos outros requer o enfrentamento com um mundo repleto de realidades
desnorteantes, como mostra a reação do narrador à narração do psiquiatra repatriado:
“O quê?” Senti que eu estava me afundando na minha confusão, que ele estava me
enredando naquela loucura – já não entendia ao que se referia; era como se falasse uma
língua cujos meios-tons eu não pudesse mais compreender –, mas a curiosidade não me
permitia mais sair dali (p. 59).
O ponto nodal da loucura reside numa falta de lógica, uma falta de que se deve
desconfiar. O sonho, como a loucura, é uma produção aparentemente ilógica e sem sentido.
Bernardo Carvalho entra em contato com a realidade onírica, intercâmbio que pode ser
observado nos casos clínicos descritos pelo psiquiatra em seus relatórios forjados, como na
vinda do funcionário do Metropolitan ao Brasil para negociar o quadro “Banhistas ao sol”.
O díptico, que representa pessoas com os olhos fechados estendidas em “chaises-longues”
numa paisagem desértica, exceto o pintor que detinha diante de si a máquina fotográfica,
confere a forma do sonho ao desvio da imaginação. O sonho é uma ficção em que as coisas
parecem estar fora de lugar, uma ficção de múltiplas situações que impõe à realidade uma
experiência que resiste à determinação do conhecimento. O problema é sempre definir o
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contorno preciso do que preexiste na realidade e do que passa a existir em dado momento
na ficção, aceitar a intervenção da imaginação como interpretação nas definições da
verdade, lembrar que o mundo não existiria se não se apresentasse dessa ou daquela
maneira à perspectiva nem sempre clara e distinta do conhecimento. A realidade se
decompõe numa atmosfera de sonho; a qualquer momento a narrativa assume a aparência
de outra realidade; os personagens, sonâmbulos de olhos fechados, bêbados distantes da
consciência gregária, não vêem as formas com clareza, logo se movimentam sem conhecer
a verdade; o que falta dificilmente pode ser calculado de uma vez por todas. Quando a
narrativa adquire a atmosfera de um sonho, o narrador ultrapassa o limite da consciência,
como o sonhador que se encontra numa ausência de si mesmo arremessado de encontro à
realidade que escapa ao controle do consenso regido pelo sentimento de coletividade.
Enquanto o abalo sísmico ocorrido em Los Angeles é a representação geográfica da
indefinição da realidade, o tumor que se desenvolve no cérebro do aspirante é a figuração
fisiológica da realidade em mutação. O ofuscamento da consciência na atividade onírica
define o ponto de contato com a substância imaginária, que aparece desse ou daquele modo
em certo momento para desaparecer logo em seguida. Quando se fecham os olhos para ver
o mundo, como no díptico “Banhistas ao sol”, o sonho é a forma da vontade de todas as
idéias, de todos os valores que constituem cada realidade envolvida na busca insidiosa de
um sentido cada vez mais incerto. Se, em Bernardo Carvalho, a ficção é uma farsa, um
teatro, um sonho que deixa a estranha sensação multiplicada a cada narrativa de que tudo se
passa no interior de uma realidade imaginária que muda de forma com uma freqüência
impressionante; em Jorge Luis Borges, não somente a literatura é um sonho dirigido, uma
máscara superposta, como também o próprio mundo conhecido é o produto de um sonho,
um simulacro de realidade onde tudo é artifício, disfarce, invenção.
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O livro Ficções se fundamenta na experiência idealizada de que as obras de
imaginação podem introduzir novos objetos na realidade existencial. Cidades imaginárias,
livros inventados, autores imaginados, toda uma multiplicidade de seres imaginários se
desprende da matéria dos sonhos para aportar no mundo dos homens. O mundo fantástico,
sobrenatural, está todo o tempo presente na realidade imediata, porém nem sempre sua
presença é conhecida em todo seu esplendor de inventividade; para Borges a mais alta
felicidade que a literatura agencia na realidade reside em sua força de invenção. A tese
pode ser observada em vários contos de Ficções, como “As ruínas circulares” que termina
quando o mago descobre que alguém o estava sonhando, logo a realidade se converte em
sonho, a verdade se transforma em ficção. Numa selva pantanosa, um forasteiro, vindo das
infinitas aldeias localizadas ao sul daquela região, desembarca num dos templos circulares
da floresta que é periodicamente consumido por um incêndio devastador. O propósito que o
guiava àquele sítio deserto não era impossível de ser alcançado, embora abarcasse uma
tarefa de difícil realização: o mago queria sonhar um homem, “queria sonhá-lo com
integridade minuciosa e impô-lo à realidade” (Borges, 2000, p. 500). O projeto consistia em
sonhar um homem que dispusesse do mérito necessário para deixar a condição de vã
aparência de um sonho e participar do mundo como um ser entre outros seres após sua
formação material e espiritual. O mago não alcançou sua meta com as primeiras tentativas.
A matéria incoerente e vertiginosa de que se compunham os sonhos escapava de seu
controle quando tentava modelar sua criação, e mesmo esgotando o espaço inteiro de sua
alma, nada pôde fazer quando descobriu que não sonhara o que imaginava estar sonhando.
Foi preciso abandonar o estado alucinatório que dominou sua consciência inicialmente,
para que a falsa realidade do sonho imaginário se dissipasse de uma vez por todas, como
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nuvens que se dispersam se são arrastadas pela força dos ventos, logo compreendeu a
grandiosidade de sua tarefa, a mais árdua que poderia empreender um homem.
O fracasso inicial, inevitável, fez com que mudasse a estratégia de realização do
projeto. Passou então a sonhar parte por parte da criatura imaginária: primeiro sonhou o
coração, depois outro dos órgãos principais, antes de um ano sonhou o esqueleto, para
finalmente sonhar um homem inteiro. O filho, contudo, permanecia imóvel, adormecido,
tão inábil e elementar, como o vermelho Adão de pó das cosmogonias gnósticas. Para
modificar esse estado e apresentar a criatura imaginária ao mundo, o mago recorreu à
mágica do Deus do Fogo, a cujo culto se consagrava o templo circular onde empreendia a
difícil tarefa de sonhar um homem completo e incorporá-lo à realidade existencial. O Deus
do Fogo animou magicamente o fantasma sonhado, o filho do mago “pensado entranha por
entranha e traço por traço, em mil e uma noites secretas” (Borges, 2000, p. 503). Todas as
criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, veriam o fantasma como um homem de
carne e osso. O Deus ordenou-lhe que instruísse o filho nos ritos sagrados e o enviasse a
outro templo circular para que se dedicasse ao culto do Fogo. Concluído o processo de
formação, ainda que o mago sofresse com a separação do filho, o jovem foi enviado a um
templo que se localizava águas abaixo em outras ruínas circulares. Para que não tivesse
consciência de seu estado, o mago fez com que se esquecesse dos anos de aprendizagem,
pois temia que descobrisse não ser um homem real, mas a projeção do sonho de outro
homem, um fantasma, um simulacro. Estava assim antecipando uma descoberta assustadora
que revelaria algum tempo depois ser ele próprio o produto de um sonho: “Com alívio, com
humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o
estava sonhando” (Borges, 2000, p. 504).
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A relação entre Borges e Bernardo Carvalho se assenta sobre a base do ficcional, o
que determina a concepção do mundo como o produto do sonho e a caracterização da
ficção como o produto da imaginação. Como as ruínas circulares que se ramificam
indefinidamente, a confabulação de mundos se desenvolve infinitamente, tanto no que se
refere ao reaproveitamento de temas e personagens comuns ao espaço ficcional, quanto no
que se refere à configuração de cada obra particular dos escritores. O desdobramento do
sonhador em sonhado pode ser livremente associado à vertigem da transformação de um eu
em outro eu. O fantasma do tumor deixa a narrativa em estado de suspeita constante, pois a
qualquer momento um outro pode aparecer na emergência da realidade. Basta uma
mudança de perspectiva na lógica da narração, e a imaginação promove a formação de um
novo disfarce. Do mesmo modo um homem que se imagina de carne e osso na realidade
natural pode descobrir-se um fantasma produto do sonho de um desconhecido quando é
despertado desse sonho e levado a conhecer seu estado atual. A suspensão indefinida do
verdadeiro estatuto da realidade aumenta a confusão entre os domínios do conhecimento. O
esforço por separar a realidade da imaginação evidencia a tentativa de encobrir as
contradições que envolvem a purificação da verdade e da ficção.
Ao entrar em contato com a ficção de Bernardo Carvalho, é difícil não acreditar que
a realidade não passe de uma grande farsa e que o homem não seja um grande mentiroso; e
não se trata somente da realidade ficcional, uma vez que a substância imaginária penetra
em todas as coisas, como revela a narrativa de Borges. Falta alguma coisa à constituição da
verdade para que se apresente como uma realidade completa. Nietzsche encontra sua
deficiência precisamente em sua falta de propriedade essencial. Mesmo quando se promete
dizer toda a verdade, “nada mais que a verdade”, mesmo quando se nega o estatuto
ficcional da realidade, traçando uma linha divisória entre as partes de um romance, como se
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fosse possível separar a ficção (1ª parte) da realidade (2ª parte), o problema da verdade
permanece como uma questão que resiste à definição essencial: a relação de apropriação
não confere nenhuma clareza aos objetos da realidade, a natureza humana permanece um
mistério desconhecido, porque não pode ou não quer abandonar a forma da indeterminação.
Embora o momento em que a verdade parece estar próxima de se revelar retorne aqui e ali,
é sempre um instante à beira da vertigem do abismo sem fundo; logo a expectativa é
abortada por um golpe inesperado do acaso, confrontando os últimos fundamentos da
verdade: uma testemunha, uma fonte, uma busca; assim a realidade ficcional paira sob a
suspeita da representação, como se o mundo não passasse de uma impostura generalizada.
Mas “Se o mundo for só uma farsa, de que vale existir?” (p. 73). A descoberta de
que tudo é uma aparência cria um ceticismo com relação à verdade, o que antecipa a
necessidade de redefinição de valores na ordem do conhecimento; parece que a única forma
de se relacionar com a verdade é desconfiando de tudo o que se encontra à sua volta. Uma
vez que não é possível tirar a prova de sua natureza essencial, não é nem mesmo possível
confiar em alguém, resta a escrita como meio de investigação da verdade, uma forma de
resistência à sua fuga para um espaço cada vez mais distante. Trata-se de uma alternativa
que corre o risco de se desviar continuamente da meta buscada, sobretudo quando a escrita
acolhe a tese de que o mundo é uma ficção sem limite, uma imaginação sem controle que
compromete as relações na redefinição das convenções gregárias, projeto que justificava a
liberação do imaginário do controle das representações sociais. Se a dúvida permanece até a
morte, adiando até o fim do mundo o encontro com a verdade, resta à escrita procurar
definir um sentido em caminhos desnorteantes, ambivalentes, uma vez que todo resquício
de confiabilidade abandonou o homem em sua procura. Sem olhos para ver, o homem,
desde Édipo, o único que não conhece a verdade que irrompe em sua experiência, tem
175
dificuldade de identificar os objetos que se encontram em seu círculo de influência. A
narração seguinte mostra como a dúvida extrema põe à prova o encontro da verdade a partir
do momento em que a incerteza age como um princípio de desintegração da realidade:
Na época, decidi não publicar este manuscrito. Na verdade, deixei-o de lado quando já não
podia mais reescrevê-lo, quando percebi que escrever não o atingia. Não só não era sensível
à literatura como leitor, mas também não era permeável a ela como personagem, não era
descritível. Parei na hora em que percebi que era inútil, que não acabaria nunca mais,
porque nunca o atingiria. Tinha que parar de escrever, se não enlouqueceria. Desde o início
ele tinha servido para me fazer perder o sentido da literatura. Se continuasse, não escreveria
mais nada além daquilo. Ia me consumindo. Assim como agora entendo que quis conhecêlo a certa altura para parar de amá-lo, também tentei conhecê-lo, entender a qualquer preço
o que ele era, para parar de escrever sobre ele, mas continuava escrevendo para conhecê-lo,
o que era uma impossibilidade e um círculo vicioso. Porque tudo era possível, todas as
verdades. O manuscrito ficou inacabado. Era só o esboço de uma coisa que escrevi por não
compreender e que quanto mais escrevia menos compreendia. Ele me assustava. A certa
altura, percebi que quanto mais avançava mais eu me perdia, que terminá-lo era dar um fim
a mim mesmo. Tinha medo de que, se o publicasse, de alguma maneira selaria o meu futuro.
Ficou por anos e anos esquecido numa gaveta (p. 138).
176
5.3 O GRANDE TEATRO DO MUNDO
A tentativa de determinar de que lado está a verdade não consegue interromper o
fluxo de seu deslocamento que se esquiva da definição mesmo sem o consentimento da
vontade; quando o homem se entrega à procura da verdade, nada, realmente nada, pode
evitar sua retirada para um domínio que não admite o conhecimento de sua totalidade. A
verdade tem seu domínio redimensionado toda vez que a movimentação de fragmentos
múltiplos e descontínuos é agenciada na ordem da vida, de modo que os acontecimentos
contraditórios e inconstantes passem a ocupar um lugar extraordinário na realidade das
coisas, a verdade assim concebida é um fluxo indeterminado capaz de assumir mil formas
diversas. Caso o mundo se acabasse de vez e nada deixasse atrás de si senão o rastro de um
imenso vazio, muita coisa importante restaria por conhecer em meio à indeterminação da
realidade. Teatro coloca em suspensão a certeza da verdade, não se pode acreditar nos
acontecimentos narrados numa sintaxe sinuosa sem nenhuma forma de resistência, uma vez
que o narrador, o personagem mais suspeito de toda a história, pode estar mentindo mais
uma vez com o objetivo de criar um espaço de incerteza em que é mais fácil se perder do
que se encontrar. O romance explora as aporias do esforço de esclarecimento ante a
contraposição de um princípio de indeterminação na constituição de acontecimentos
reversíveis, sua narrativa colide uma multiplicidade de disfarces que envolvem a verdade
numa desagregação sem limites, nesse sentido a reprodução da fotografia de um homem de
cabeça para baixo na capa do romance antecipa uma série de inversões inesperadas que
intervêm na narrativa.
O romance é constituído por narrativas ficcionais que encenam testemunhos
verdadeiros. Em “Os sãos” um policial aposentado decide abandonar a capital de um
177
império econômico para onde os pais haviam emigrado em busca de um futuro melhor,
refazendo em sentido contrário o caminho da emigração de anos atrás quando ainda estava
na barriga de sua mãe. O policial cruza a fronteira que isola o país dos “sãos” ao norte da
terra dos “loucos” ao sul; o objetivo da fuga é retornar ao país de origem para narrar na
língua natal a verdade sobre atentados terroristas contra executivos bem-sucedidos na
economia da metrópole. A desconfiança em relação aos atentados levou o policial a pedir
aposentadoria antecipada; com a prisão do terrorista, pôde completar a história que
desconhecia em sua totalidade. Enquanto o químico V. assumiu a autoria dos assassinatos,
o historiador N. denunciou o irmão às autoridades depois de reconhecer nas cartas pessoais
do suspeito o estilo das cartas públicas que esclareciam a motivação dos ataques com o pó
amarelo. A revelação permite que os policiais executem os últimos procedimentos do
projeto de conservação da ordem social; inspirados na teoria do mal necessário, os agentes
da ordem forjaram os atentados como estratégia de conservação da coesão social. O policial
compreende a farsa de todo o processo somente duas horas após reencontrar Ana C., que o
leva ao artigo com as informações sobre o terrorista; somente então percebe que sua entrada
na polícia não ocorreu por acaso – a organização o contratara conhecendo sua ligação com
o autor da teoria do mal necessário, como também seu projeto de se tornar um escritor.
Durante anos sua única função na polícia tinha sido ouvir e escrever: era o autor das cartas
publicadas nos jornais de todo o país que criaram uma teoria de explicação do mundo na
ótica de um terrorista paranóico. As cartas enviadas às vítimas pelos policiais criam em
todo o país uma atmosfera de insegurança e desconfiança generalizada; como qualquer um
pode ser um terrorista em potencial, todos se tornam suspeitos na realidade. O policial
esperava que o terrorista aparecesse para corrigir a usurpação dos atentados, no entanto,
durante vinte anos, o terrorista permaneceu em silêncio: o policial não desconfiava de sua
178
co-autoria, porque imaginava que as cartas faziam parte da investigação. Antes do sétimo
atentado, pela primeira vez, o policial recebeu ordem para escrever uma carta antecipada –
queriam que deixasse prontas as cartas dos futuros atentados. A ocorrência do sétimo
atentado como previsto na carta fez com que deixasse a polícia. A desconfiança virou
certeza quando leu a notícia da prisão do suposto terrorista; ainda que quisesse permanecer
com Ana C., decidiu deixar a capital do império. Para escapar comprou uma certidão de
óbito falsa, foi à cabana no gelo à procura de uma fórmula secreta, e partiu para a terra natal
de seus pais, pois somente fora do país dos sãos podia restituir na língua antiga de seus pais
alguma verdade ao que ouvira durante anos: “Só nesta língua posso restituir a verdade
infame dessa história. E o sarcasmo que lá não existe. Só aqui as coisas podem fazer algum
sentido” (p. 23). A escrita de “Os sãos” tem por objetivo justamente desmascarar as
imposturas dos agentes da ordem. Quando o narrador chega ao término da investigação dos
acontecimentos, revela seu nome próprio e encerra em código cifrado o primeiro bloco do
romance com a frase “Até que Daniel para de sonhar” (p. 43).
Em “O meu nome” um fotógrafo de paisagem obcecado pela verdade que somente
pode existir nas coisas inanimadas se dedica da mesma forma que o policial aposentado a
conhecer a natureza de uma conspiração nebulosa. O centro da investigação é um ator de
vídeos pornográficos que se autodenomina Ana C., tão impalpável como o espectro de um
fantasma que se esquiva da matéria concreta. Este nome aparece na primeira parte do
romance associado à namorada do policial aposentado que mais tarde será contemplada na
atuação em vídeos pornográficos. Ana C. deixou o país natal onde se iniciou na prostituição
e atravessou a fronteira ilegalmente para trabalhar na capital da pornografia. Sua atuação
desperta nos fãs de todo o mundo uma espécie de loucura que parecia estar adormecida. A
maior parte desses admiradores vive em hospícios onde escreve uma literatura tão
179
incorpórea quanto Ana C.; da mesma forma que uma atmosfera de irrealidade cercava o
astro, a literatura escrita nos hospícios estava repleta de acontecimentos inverossímeis. A
indicação do fotógrafo de paisagem para compor a equipe de produção dos filmes em que
Ana C. interpreta a si mesmo é agenciada por uma revista sensacionalista que deseja apurar
sua participação na morte de um político importante. O fotógrafo exerce o papel de um
agente infiltrado na indústria pornográfica para descobrir o real envolvimento do astro no
suposto homicídio relacionado com o comércio do sexo. Tempos depois Ana C. descobrirá
que o senador com quem estivera numa transação jurídica não estava morto, não poderia
conhecer os fatos antes de vê-lo na televisão, pois não sabia como se chamava na realidade,
nem chegou a ver sua fotografia nos jornais. O fotógrafo vislumbra uma série de farsas em
que Ana C. pode estar envolvido; é impossível saber de que lado está a verdade em meio a
tantas imposturas; como mostra a narrativa fantasiosa da loucura, tanto Ana C., quanto o
fotógrafo podem estar mentindo. Assim como o policial aposentado é enganado e
introduzido num mundo que se movimenta, se modifica, se mimetiza, Ana C. participa de
um baile de máscaras que complica a natureza, a realidade, a existência. O que mais
surpreende num enredo repleto de imposturas é a revelação final de que tudo o que foi
escrito em nome da verdade não passa de um artifício cuja realidade se transforma toda vez
que a verdade e a ficção têm seu domínio redimensionado. Não por acaso o fotógrafo de
paisagem também se chama Daniel, o que traz à lembrança a fórmula que aparece na
primeira parte do romance: “Até que Daniel pare de sonhar” (p. 43).
A série de acontecimentos narrada em ambas as partes do romance desperta a
dúvida insidiosa sobre a natureza das coisas: falta definição à fronteira entre a verdade e a
mentira que se misturam de maneira inextricável, e o mundo das oscilações indeterminadas
surpreende a cada virada de página. Mesmo conhecendo pouco a pouco o domínio em que a
180
verdade e a ficção mudam de lugar com bastante freqüência, ainda se é surpreendido pelo
que deixa de ser o que é não mais que de repente. A verdade em que se acredita pode
parecer ainda mais irreal que a própria ficção, nesse quadro o narrador se fragmenta em
várias situações em que circulam identidades diferenciadas: ora é Daniel que inventa um
personagem terrorista e configura uma realidade onde a ficção se finge de verdade, ora é
Daniel que inventa um personagem ator e configura uma realidade onde as perspectivas são
tão várias quanto as necessidades. A narrativa é de fato o grande teatro do mundo em que a
verdade e a ficção se afastam, se aproximam, se enredam num baile de máscaras
vertiginoso. Daniel, o policial, quer contar a verdade na língua antiga de seus pais; Daniel,
o fotógrafo, é um obcecado pela verdade inanimada da fotografia. Ambos querem envolvêla numa fortaleza, impedi-la de escapar do círculo de observação, definir o conhecimento
em que habita silenciosa e enigmática. Mas o narrador verte e reverte, diz e desdiz, quando
ouve e escreve. Não se pode confiar em seu testemunho, seja porque já não é mais possível
permanecer muito tempo sobre o mesmo fundamento, seja porque nunca se está
completamente seguro dos desencontros eventuais da verdade: sua história permanece
inacabada como As mil e uma noites de Cheherazade pedindo adendos à vontade de saber
que não se cansa de inventar seres imaginários. Como numa sala de espelhos onde nada é o
que parece ser, é difícil decidir-se por um caminho, uma vez que a consciência da
ambigüidade não unifica a experiência do conhecimento. A busca da verdade pode ser um
sonho absurdo, no entanto ainda não perdeu a atualidade, sobretudo quando atinge o
domínio do conhecimento em que todo critério de verdade pode ser questionado, até a
verdade clara e distinta contemplada em sua imutabilidade.
Teatro reúne uma série de suspeitas em relação à multiplicação de disfarces na
narrativa. Costa Lima questiona se o narrador é um louco ou alguém que assim se finge
181
para escapar dos sãos. O crítico associa o romance “a um jogo de espelhos em que cada um
refletisse e distorcesse a imagem do outro. Cria-se assim um fascinante quadro de
incertezas que aposta em um leitor dotado de um interesse decifrativo semelhante” (2002,
p. 273-274). O narrador demonstra que a verdade imutável tem origem nas criações
humanas que podem ou não conservar a coexistência de antagonismos e indeterminações na
realidade. A denúncia da farsa programada dos policiais manifesta certos mecanismos dos
sistemas de regulação que exercem um alto controle sobre a vida, principalmente quando
tentam prever os acidentes, ordenar as sedições, abolir os refugos da realidade, somente
assim podem compor uma organização capaz de purificar o “normal” do “patológico”. O
testemunho de Daniel apresenta uma sociedade corrompida pelo dinheiro da imagem, pela
religião do mercado, pelo teatro das ficções. O risco da ficção sem limite é introduzir na
ordem da vida determinações que impeçam a reintegração dos seres. Platão temia que a
ficção criasse monstros de toda espécie e destruísse a ordem da cidade. Para Daniel “O
problema é menos a mentira em si do que seu poder de contaminação, porque ela
desestrutura todas as verdades, faz você perder o rumo e não saber mais o que está
fazendo” (p. 48). Mas a ficção propõe outras formas para contrapor ao mundo conhecido,
ficcionar é uma atividade inclusiva que interfere no sentido da vida. Como o paranóico que
não suporta a idéia de um mundo sem sentido e procura atribuir um sentido mesmo onde
não há sentido algum, a ficção explora todo um arsenal de situações inauditas colocadas à
disposição do escritor ao instaurar mundos no mundo. A vontade de saber a verdade faz
com que os homens ultrapassem os limites do conhecimento estabelecido e percorram
domínios estranhos onde ainda estão para ser inventados o norte e o sul, o leste e o oeste.
Daniel atravessa a fronteira em direção ao país dos loucos onde impera uma lógica diversa
da distribuição dos seres no país dos sãos. Ana C. atravessa a fronteira em direção ao país
182
dos sãos onde introduz a lógica do ser indeterminado numa forma imaterial. Ficcionar não
é, portanto, como confirma Platão ironicamente, uma atividade que possa ser simplesmente
deixada de lado: enquanto a ficção explora as perspectivas que atravessam a constituição do
conhecimento, sinaliza que a verdade pode ser buscada na direção contrária à que está
sendo seguida no momento atual pela necessidade de se fundamentar uma representação.
Teatro põe em cena um (des)enredo formado por inversões contínuas que desafiam
a lógica previamente constituída. À medida que o narrador força o limite da
verossimilhança interna, outra lógica domina a realidade da narrativa, o critério de verdade
uniforme não resiste à ação da ambigüidade sobre a natureza da interpretação. Paranóia,
alucinação, história extraordinária; ilusão, loucura, história insensata; farsa, invenção,
história inverossímil; estiramento da lógica, quimera de imposturas, grande teatro do
mundo, o romance é uma narrativa de ficção que se finge de relato da verdade. Dizer que o
romance está para além do sistema mimético enquanto representação analógica da realidade
estabelecida não explica como é preciso a forma da narrativa de Teatro. Tanto a verdade,
quanto a ficção não são passíveis de determinação no romance, a motivação desse processo
deve ser buscada na mudança de perspectiva sobre a natureza do conhecimento. A
composição da narrativa numa sintaxe enviesada rompe com os postulados da mimese
representativa, o que equivale a escapar da vontade de verdade do romance realista e
desarticular a expectativa em relação à descoberta da verdade. A natureza da verdade pode
mudar de sentido a qualquer momento determinando uma nova direção para a narrativa, a
simples identificação dos fatos torna-se assim uma tarefa impossível de ser realizada. Se a
distribuição dos componentes da narrativa pode ser redimensionada na trama das ações
sempre que convier à apresentação de uma experiência desconhecida, a repercussão dos
acontecimentos se torna mais importante do que os próprios acontecimentos que costumam
183
ser considerados representantes da verdade em sua forma mais acabada. O sistema da
ficção se apropria da lógica do ilógico que organiza a seu modo novos esquemas de
sentido: “Só a lógica do ilógico pode trazer algum entendimento, alguma visão onde tudo
se tornou cegueira, fazer você enxergar, por trás da cortina de sentido, um outro sentido que
possa dar conta da compreensão do mundo, já que este não funciona” (p. 131). Cada ficção
carrega o problema da definição de parâmetros para a compreensão de algo que em si
mesmo não pode ser compreendido, mas o que não pode ser conhecido pode ser imaginado.
A confabulação das palavras não é apenas uma fonte de ficções multifacetadas, mas
também um poderoso instrumento de formação de realidades antropomórficas. As
perspectivas permanecem, portanto, confundidas no imaginário do narrador: a ficção é uma
realidade indeterminada, a realidade é uma ficção naturalizada. Para reconhecer a
ambigüidade que assinala cada acontecimento, basta acompanhar o percurso do narrador.
Daniel, o policial aposentado, se apresenta desde o início da narrativa como o defensor dos
atributos da verdade; é preciso contar tudo o que sabe sobre a impostura dos agentes da
ordem para que algum resquício da verdade possa ser conservado na memória do leitor.
Daniel é a única testemunha de todo o processo – sua única função durante anos a fio tinha
sido ouvir e escrever – era a memória da polícia. No entanto, é a própria testemunha que
alimenta a desconfiança do estatuto formal de sua memória, já que tudo depende de seu
ponto de vista, tudo está apenas em sua cabeça, “Não se pode confiar nos homens” (p. 18).
Os momentos de instabilidade se multiplicam entre as conexões da narrativa; não parece
haver limite para o encadeamento de acontecimentos suspeitos em sua composição, uma
vez que o princípio de mudança altera a forma dos estados constituídos. Embora a oscilação
domine a realidade mais extrema – quanto mais se procura a verdade, mais distante ela se
encontra da experiência – a escrita ainda se aventura na exploração de certos parâmetros. O
184
processo não tem a forma de uma resposta definitiva para o problema inicialmente
vislumbrado; define-se antes como um descompasso que atravessa as situações existenciais
e contamina tudo o que se encontra à sua volta, como o pó amarelo dos atentados que faz
tudo perder o sentido: “O inferno é descobrir que você nunca foi o que pensava que era. É
morrer e descobrir que o que você achava que era não é nada” (p. 112).
Já foi dito que entre a escrita e o mundo se desenvolve uma relação de
contaminação. A construção de um personagem sob a pele de uma identidade, esboçada em
traços sucessivos que segmentam os contornos da ambigüidade, traz para o mundo
realidades desconhecidas. Em Teatro, como em Os bêbados e os sonâmbulos, a ficção é
poiesis, introduz no mundo algo que antes não existia, produz realidades em vez de
reproduzir mundos conhecidos:
Sob as ordens deles inventei sem saber o “terrorista”. E foi só quando percebi que a minha
palavra se tornava realidade é que decidi me afastar, e nunca mais escrever nada,
amaldiçoado, a não ser nesta outra língua, que eu mal entendo. Só nesta outra língua posso
contar a história sem riscos, sem que eles usem as minhas palavras em benefício próprio,
sem que elas se tornem realidade. Só nesta outra língua pobre posso escapar deles e contar o
meu plano para reparar, ainda que parcialmente, os estragos, o plano que concebi ao ler o
jornal, duas horas depois de ter reencontrado Ana C. na rua (p. 77).
A ficção é uma espécie de paranóia. Do ponto de vista etimológico, “paranóia” significa um
distúrbio geral da razão que se extraviou do intelecto (nous); a paranóia é a forma
insurgente de todas as idéias exóticas que são organizadas num fluxo de sentido
determinado para além do limite da razão previamente estabelecida; se o mundo se nega a
oferecer um sentido, o paranóico se torna o autor de seu próprio mundo: “O paranóico não
pode suportar a idéia de um mundo sem sentido. É uma crença que ele precisa alimentar
com ações militantes, para mantê-la de pé, tal é a força com que o mundo a contraria” (p.
31). Daí entende-se que a ficção, sendo por definição a criação de seres imaginários, seja
185
uma espécie de atividade paranóica que busque configurar sistemas de sentido em
descompasso com a lógica que regulamenta as representações sociais. A ficção se torna
responsável pela formulação de um pensamento original e independente que se investe do
repertório necessário para se contrapor às representações naturalizadas. À medida que as
cartas eram encaminhadas às vítimas dos atentados, Daniel compunha livremente uma
teoria do mundo na ótica de um paranóico. Nelas imaginava as feições psicológicas de um
homem perturbado, identificava a manipulação do processo civilizatório e propunha uma
organização que restituísse valores humanistas fundamentais que estavam sendo destruídos
em nome dos interesses do capital industrial e tecnológico. A paranóia, como uma razão
tortuosa que foge às normas habituais, encerra uma visão parcial da realidade que busca
compreender a totalidade do mundo. Seu parentesco com a loucura se encontra em sua
capacidade de formulação de lógicas que desafiam o pensamento racional quando é preciso
atribuir uma interpretação a acontecimentos desconhecidos. Embora a paranóia seja banida
com outras formas de insanidade para o país que se localiza ao sul, como os refugos que
são expelidos para os aterros sanitários nas grandes cidades, o delírio ficcionante é uma
forma de conhecimento que resiste à ordem estabelecida, sempre que a paranóia é vista
nessa perspectiva transparece seu valor positivo. Teatro mostra que o estado de doença,
como a loucura, pode ser a saída de muitos impasses que imobilizam a existência. Como
palavras ambíguas que apresentam um sentido deslizante, a enfermidade pode ser uma cura,
a contaminação pode ser uma purificação, o veneno pode ser um medicamento, contanto
que o estado de doença seja compreendido como uma potência ficcionante, capaz de
engendrar as ficções mais fantasiosas, as realidades mais imateriais, as lógicas mais
impensáveis, sempre contornando as situações extremas com perspectivas contraditórias.
186
O modelo teórico que opera na ficção de Bernardo Carvalho está contido na fórmula
obscura “Até que Daniel pare de sonhar” (p. 43). Daniel se deparou com a fórmula
incompreensível numa das primeiras noites em que saiu pelas ruas da cidade fantasma.
Trata-se de um código cifrado usado numa variedade de situações comunicativas que
dificultam o entendimento de seu verdadeiro significado: “É como um ponto impenetrável
da língua pobre do meu pai. Também não me atrevo a perguntar o que significa, já que me
parece uma expressão tão corriqueira” (p. 44). Somente os iniciados em sua linguagem que
não se sentem ameaçados em sua presença podem compreender seu sentido, o misterioso
enigma que habita a fórmula secreta desafia a compreensão de qualquer significado, a
referência ao profeta israelita é explícita e retorna novamente na segunda parte do romance,
tanto o policial aposentado, quanto o fotógrafo de paisagem têm identificação homônima.
Às últimas linhas do romance descobre-se que ambos são uma “só” e “mesma” pessoa
quando se trata de definir a fonte primordial de onde brotam as histórias de Teatro; somente
enquanto instâncias que controlam o ficcionamento de realidades podem ser considerados a
mesma pessoa, uma vez que assumem identidades diferentes nas duas partes do romance.
Consta que Nabucodonosor teve um sonho tão perturbador que foi preciso exigir dos
mágicos a narração de seu conteúdo antes de apresentarem sua interpretação, e como os
mágicos disseram que somente os deuses poderiam adivinhar o conteúdo dos sonhos, o rei
babilônico decretou a morte de todos os sábios daquele país. Para evitar o massacre, Daniel,
que estava entre os escribas do rei, teve o conteúdo do sonho revelado pela intervenção de
seu Deus: o sonho antecipava a sucessão de monarcas que ocupariam o trono no reino de
Nabucodonosor (Dn, 2, 1-49). Na visão de Ana C., o rei ordenou que Daniel narrasse
antecipadamente o sonho para não ser enredado numa interpretação falaciosa.
Curiosamente o profeta conseguiu narrar o sonho que era de natureza sigilosa, e o rei não
187
discutiu a autenticidade da narração, passando a ouvir a interpretação da seqüência onírica.
Se Daniel realmente inventou todo o sonho, como também a interpretação de sua
simbologia, a realidade se encontrava mais uma vez afastada da natureza essencial do
mundo previamente constituído como um ser bem ordenado. Para Ana C. o desafio de
Nabucodonosor aos intérpretes deixa transparecer que cada interpretação cria a sua
realidade, portanto, a realidade se fundamenta numa interpretação: “e foi isso que Daniel
compreendeu ao responder ao desafio com um sonho que provavelmente inventou na hora”
(p. 84). A fórmula obscura “Até que Daniel pare de sonhar” é uma mensagem codificada da
teoria ficcional que orienta a execução dos procedimentos de composição em Bernardo
Carvalho. Somente quando Daniel parar de sonhar, o jogo de disfarces replicantes será
suspenso da realidade. A fórmula explora os mal-entendidos existentes entre a verdade a
priori e a verdade a posteriori, confrontando a repartição dualista do pensamento.
A necessidade de enveredar por um sentido que prescinda do mundo previamente
constituído aparece em outras fórmulas do romance. N. busca insistentemente encontrar o
“tesouro dos cátaros”, e V. vive fazendo cálculos à procura da “fórmula da humanidade”. O
tesouro é um pergaminho enterrado numa urna de latão no qual está escrita uma nova teoria
do mundo em grande parte na língua d'oc. Consta no manuscrito cátaro que o corpo é a
sede da verdade – o corpo traz todas as respostas, de onde viemos, para onde vamos, o que
somos, por que estamos aqui –, no entanto, por ser uma invenção do demônio, não revela o
conhecimento que detém consigo, o que impede que a alma possa conhecer a verdade. Para
poder encontrar-se com a verdade, a alma precisa pôr-se em desacordo com o corpo; ao
indispor-se com o próprio corpo, a alma promove a desarticulação do processo de
naturalização do sentido e conseqüentemente a reflexão sobre a corrupção da verdade que é
a maior arma contra a fuga de sentido do mundo. A teoria do mundo expressa na ótica do
188
manuscrito cátaro retoma antigas crenças do platonismo que concebem o corpo como a
prisão da alma e a verdade como o bem absoluto que pode ser conhecido somente por
iniciados no processo de depuração da forma. A fórmula da humanidade, por sua vez,
compreende um sistema de sentido que elide o mundo conhecido de sua representação.
Trata-se de um mundo expresso em fórmulas e números jamais concebidos, um mundo
imaginário que talvez fosse perfeito em sua integridade e que está codificado em fórmulas
matemáticas incompreensíveis, porque simplesmente apresentam um mundo desconhecido.
As duas teorias se cruzam na narrativa de Daniel. O pergaminho dos cátaros contém
passagens expressas em código desconhecido que se oculta por trás da linguagem verbal.
N. envia os manuscritos secretos a V. para que possa traduzi-los em linguagem matemática.
V. consegue decifrar a incógnita do tesouro cátaro numa sucessão interminável de números
e sinais matemáticos que apresenta para solucionar o problema da verdade. (In)felizmente
somente V. teve acesso ao sentido desse mundo regido por uma lógica desconhecida. O
tesouro dos cátaros, como a fórmula da humanidade conduzem à descoberta de uma teoria,
um conhecimento, uma perspectiva que se mantém fora do consenso habitual. O idealismo
dos projetos dessa natureza não esconde o desejo de superar o limite que impede a
contemplação de uma realidade mais perfeita. É preciso verificar se a forma idealizada de
mundo é de fato a mais perfeita, o que poderia ser feito através da dúvida especulativa que
questionaria o mundo estabelecido ainda que se mantivesse fechado sobre si mesmo.
Daniel analisa os atentados terroristas, investiga o assassinato do senador, procura a
fórmula da humanidade, busca o tesouro dos cátaros, interpreta o código dos sonhos; a
aporia da verdade com que se confronta nesse caminho parece ser insolúvel: há tantas
possibilidades como hipóteses imaginárias quantas sejam as necessidades. O empenho por
resolver o problema impulsiona a vontade de saber na exploração da incoerência de um
189
mundo incongruente à espera de compreensão. A procura da verdade, contrariando a
vontade de determinação da razão objetiva, desencadeia a proliferação da ficção mais
ambígua no interior do conhecimento de fatura reversível. O acontecimento possibilita a
invenção de-fórmulas-de-códigos-de-lógicas que reflete a formação emblemática da
demanda absurda cada vez envolvida por uma visão parcial do mundo tentando
compreender a totalidade da existência. A ficção não só recolhe a riqueza extraordinária a
que se pode ter acesso através da dúvida especulativa, como fornece o suporte significante
para se pensar o processo de determinação da verdade; ao instituir um mundo próprio onde
não pára de se movimentar o moto-contínuo dos multiplicantes pontos de interrogação,
resiste à naturalização das experiências que restringem o horizonte da consciência.
A ficção escapa do círculo da consciência gregária sempre que configura estruturas
reguladas que se dispersam na qualidade de duplicidades replicantes. Tudo o que ultrapassa
o limite da consciência automatizada na ordem naturalizada das representações sociais
libera as condições inumeráveis que se ocultam por trás das idéias convencionais. A ficção
converte em ambigüidade todo acontecimento de fatura reversível, de sorte que é
impossível acreditar na evidência do ser como realidade previamente constituída. O mundo
ficcional tem a forma de um acontecimento tão inesperado, a tal ponto estranho e
desconcertante, que a única regra da ficção parece ser o conflito contínuo com a base
fundamental do mundo estabelecido. O conflito entre a certeza da verdade envolvida na
fórmula da impossibilidade e a indeterminação da ficção arrastada num fluxo vertiginoso de
sentido constitui a base fundamental de Teatro. O acontecimento está em contradição com
o bom senso e a lógica racional, de modo que a verdade é só mais um equívoco numa série
de desencontros, uma aparência prestes a mostrar seu esgotamento. Estancar o fluxo desse
mundo paranóico onde o estiramento da lógica está subordinado à livre escolha da
190
imaginação pode restituir alguma função à vontade de verdade; no entanto, uma vez que a
desconfiança generalizada se introduziu em todas as coisas, como o pó amarelo que impede
o encontro com o sentido do mundo, todo esforço por anular a força subversiva do princípio
de incerteza está fadado a se tornar a fábula mais inverossímil. Quando a desconfiança se
torna incontornável em meio a acontecimentos indeterminados, a reflexão crítica
permanente é o antídoto mais eficiente contra a retirada da verdade. Se a verdade pode ser
exatamente o contrário do que se apresenta na realidade, se a verdade pode ser mais
inverossímil do que a própria mentira, se a verdade não se justifica como fundamento senão
enredando uma série de deslocamentos, pode-se começar enfrentando o problema da
verdade pela reunião de todos os contrastes que se introduzem em seu interior, e para isso é
necessário rever o conhecimento definido como o que permanece sempre da mesma forma.
É uma incógnita até quando a vontade de saber resistirá ao imperativo da vontade de
verdade em meio a um mundo indeterminado onde duplicidades replicantes esvaziam a
natureza dos seres: “Toda aquela história tinha apenas servido para me confirmar o que
sempre soube, que não há verdade possível entre os homens, ‘um dia estão de um jeito, no
outro, de outro’, e que só as coisas inanimadas podem me dar alguma certeza” (p. 127).
Bernardo Carvalho explora o sentido onírico da existência em que transparece a
relação conflitiva entre a essência e a aparência na constituição da realidade das coisas. A
associação dialética entre teatro e mundo, sonho e vida, é um tópico recorrente no período
conhecido como barroco na história da arte. As peças de Calderón de La Barca, como O
grande teatro do mundo e A vida é sonho, conservam a intensidade do teatro da ficção no
imaginário cultural do século XVII a partir do próprio título. O auto sacramental representa
Deus como o criador absoluto do Mundo onde o Homem incorpora o papel que lhe é
designado antecipadamente na criação; se o Mundo define os papéis a serem representados
191
na vida, caracterizando cada um com os adornos mais apropriados, Deus executa sua
distribuição definitiva entre os homens, pois seu conhecimento é de natureza dogmática. A
representação concede sentido e potência, razão e substância, ao ser que existe somente
como representação e artifício. De modo semelhante a ficção em Bernardo Carvalho
configura a oscilação da identidade indeterminada: o homem se inventa como ser e se
constitui na execução de uma máscara reversível. Como a representação constitui uma
experiência predeterminada, não se pode recusar o papel do autor; porém dispõe-se de
livre-arbítrio para negociar com as paixões que se interpõem no caminho da virtude. O
drama histórico, por sua vez, representa Segismundo em conflito permanente com a
realidade que muda de sentido quando sua forma é alterada. Segismundo questiona a
natureza da realidade, desconfia da realidade de sua própria natureza; a percepção oscila
entre o engano e o desengano que se misturam em sua experiência; o sentido se fragmenta
em incertezas como a vista se perde num labirinto; a aparência tem a forma do ser que
imagina o que não pode ver. Se o mundo é um teatro, se a vida é um sonho, a realidade é
uma ilusão, o ser é uma aparência. O homem não vive, mas representa um teatro, sonha um
abismo confuso. O teatro, como o sonho, dura o tempo de uma vida, breve como o instante:
... E pois já tenho
todo o aparato junto,
vinde, vós, vinde, mortais,
a enfeitar-vos com tudo
para que representeis
neste teatro do mundo!
(Calderón de La Barca, 1988, p. 9)
Verdade é, pois, reprimamos
esta fera condição,
esta fúria e ambição,
para um dia que sonhemos.
Aprendamos, pois vivemos
em mundo tão singular,
que o viver é só sonhar;
192
e ensina-me a vida mãe
que na sua vida o homem
sonha o que é ‘té acordar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com este engano mandando,
ordenando e governando;
e esse aplauso, que recebe
fingindo, no vento escreve,
e em cinzas a dura morte
o torna, ó triste sorte!
Mas há quem queira reinar
vendo que há-de despertar
no triste sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza,
que mais zelos lhe oferece;
sonha o podre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que adquire grandeza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende,
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
e porém ninguém o entende.
Eu sonho que estou aqui
destes ferros carregado,
e sonhei que noutro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção,
e o maior bem pouco é;
pois que a vida sonho é,
e os sonhos, sonhos são.
(Calderón de La Barca, 1973, p. 130-131).
193
VI O QUE NÃO SE CONHECE
A dialética é o único caminho para se atingir o conhecimento da verdade no
pensamento de Platão; tão logo consiga refutar os princípios falsos que encobrem a
natureza das coisas, é capaz de encontrar a propriedade essencial de cada singularidade. A
dialética opera segundo a lógica que caminha da formulação geral à definição particular,
assim a reflexão atinge as contradições do conhecimento ilusório e supera os antagonismos
a princípio recobertos pela certeza imediata da verdade. Platão acredita que a parte
intelectiva da alma (nous) pode conhecer a forma inteligível da idéia (eidos) que representa
a natureza de cada ser determinado (physis). A idéia de uma coisa define o que uma coisa é,
a forma de um objeto está desde sempre definida, todo o tempo se subordina a esse
princípio, todo ser se ajusta à fórmula da prescrição definitiva, como um conceito que
contém o fluxo do devir que não pára de se transformar: o círculo é uma figura “cujas
extremidades se encontram em todos os pontos a igual distância do centro” (Cartas, VII,
342b). O filósofo sabe onde se localiza a verdade e como chegar até seu domínio, para isso
precisa estabelecer a classificação completa da identidade que distingue a natureza de cada
ser, assim pode definir as leis e os costumes que regem a vida pública e privada na cidade.
A criação da Academia onde se concentra o estudo de ciência e filosofia tem por objetivo
encontrar os fundamentos que servem de base ao projeto de melhoramento da humanidade.
Para intervir nos afetos e juízos que sinalizam o sentido da vida, é preciso construir
novamente as leis que organizam o modo de vida público e privado. O melhor homem é
aquele que se preocupa em executar as ações convenientes à virtude. A arete platônica
nasce do consórcio de quatro qualidades essenciais – a justiça (dikaiosyne), a temperança
(sophrosyne), a coragem (andreia) e a sabedoria (phronesis)–, como mostra passagem do
194
Banquete (196b-e), da República (427e sqq.) e das Leis (630a-b). O problema consiste em
definir os atributos específicos da natureza essencial, em encontrar os fundamentos secretos
que viabilizam a correspondência entre o conceito abstrato e a realidade objetiva.
A teoria do conhecimento não pode ser dissociada da prática política e da formação
ética; da definição da natureza de cada ser à distribuição de cada especialidade na cidade,
Platão projeta um sistema de explicação e controle da vida em que saber e poder se
demandam reciprocamente. “Por natureza, saber e poder tendem a se unir numa parceria
sólida, mutuamente não cessam de se perseguir, se procurar, se reunir” (Cartas, II, 310e),
portanto estão associados os princípios abstratos às definições das virtudes essenciais, as
fórmulas categóricas às distribuições das especialidades funcionais, as propriedades
conceituais às representações naturalizadas. Para se atingir o conhecimento da natureza de
cada coisa, não basta encontrar a medida de cada ser na definição da idéia de cada natureza,
é preciso também se confrontar com toda especulação que se aventura na definição da
verdade, surge então o conflito com sofistas, poetas e chefes de estado. O Górgias
representa sofistas e oradores como se fossem a mesma coisa e se ocupassem dos mesmos
assuntos. Como ocorre com outros diálogos, a discussão focaliza o problema da definição
de um conceito, uma propriedade, uma categoria – O que é a retórica?, o que é a sofística?
A retórica tem por objeto uma variedade de discursos que são capazes de persuadir os
cidadãos na assembléia, os senadores no conselho, os juízes no tribunal. Conhecida como a
técnica obreira da persuasão que gera a crença (453a), a retórica pode convencer,
determinar, certificar fundamentos, o que não quer dizer que seja o conhecimento mais
refinado no domínio do saber; para Platão a retórica não possui um conhecimento
verdadeiro dos assuntos de que trata com tanta naturalidade, mas apenas uma opinião
enganosa nascida da crença em determinadas convicções que ainda não foram
195
demonstradas racionalmente. O problema da retórica não é diferente do problema da
sofística: que objeto lhe é destinado?, que técnica lhe é mais adequada?, sobre que deve
responder na realidade? A retórica incorre em erro atribuindo-se um conhecimento
enciclopédico de que não dispõe na realidade, encaminhando-se às reuniões coletivas em
que procura conquistar a audiência de uma multidão de ignorantes, revelando-se um
simulacro de filosofia, uma aparência de política, uma forma de adulação que busca o
prazer das paixões pessoais sem se preocupar com o que é mais importante para Platão – o
melhor em si mesmo, a virtude em seu conjunto. O poder da palavra pode, se alcançar a
eficiência da persuasão, se sobrepor à lei, à ética, à verdade, tornar o “crime” aceitável, o
“erro” elogiável, a “mentira” verdade; assim cometer a injustiça é melhor que sofrer a
injustiça, argumento que rompe com padrões morais para realizar uma nova ambição da
vontade de poder, concedendo-lhe tudo aquilo que deseja sem submetê-la a nenhuma forma
de controle; afetado pela sedução do prazer infinito, o homem se torna um tirano que só
pensa em sua própria conservação. Assim como a mimese ameaça a integridade do sistema
de sentido que goza de uma realidade autônoma, preexistente desde sempre ao
conhecimento que se pode ter de sua natureza, sobretudo quando se apresenta como um
modelo de formação da identidade, a retórica pode fundamentar perspectivas que se
ajustem ao imperativo da vontade de poder que identifica o bem absoluto com o prazer
imediato, de forma que os princípios fundamentais não passem de convenções naturalizadas
e as representações sociais sejam colocadas entre parênteses que assinalem sua posição no
mundo (482e). Platão refuta o potencial inovador que possa subsistir na prática retórica,
como ocorre com a poesia e a sofística, uma vez que a potência poética da palavra apenas
reforça aparências, opiniões, preconceitos, visando somente o prazer pessoal na
constituição de um conhecimento sobre o mundo:
196
Mais ainda: essa imponente e maravilhosa forma de poesia que é a tragédia, a que aspira?
Não te parece que todos os seus esforços e empenho se orientam no sentido de dar prazer
aos espectadores? Se, porventura, uma idéia é agradável e graciosa, mas má, esforça-se a
tragédia pro eliminá-la e, pelo contrário, se é desagradável mas útil, faz questão de a dizer e
cantar, quer o público goste quer não goste? Qual é destas duas atitudes aquela que te
parece característica da tragédia? (502b)
A definição da natureza das coisas torna possível a formação de um paradigma de
conceitos que serve de fundamento para a criação das leis e constituição dos costumes.
Todo projeto de definição da identidade substancial não admite que a realidade seja uma e
outra coisa ao mesmo tempo, não admite que a natureza passe por transformações
sucessivas; logo o belo exclui o feio, o movimento exclui o repouso, a força exclui a
fraqueza... A necessidade de definição do que cada coisa é na realidade evidencia a
importância do fundamento conceitual na formação do que Platão entende por atividade de
pensar, conhecer, saber. Se o essencial é dizer a verdade sobre cada natureza particular,
cumpre à dialética a tarefa de eliminar a opinião do domínio do conhecimento verdadeiro.
O Teeteto consagra uma vez mais a idéia de que é preciso definir cada coisa em si mesma e
não esta ou aquela variedade de ser; como existem muitas ciências – geometria, astronomia,
aritmética –, é preciso saber o que pode ser a ciência em si mesma. Na primeira tentativa de
responder à interrogação de Sócrates, Teeteto apresenta a hipótese dos sensualistas para os
quais a ciência é a sensação. Protágoras afirmava que o homem é a medida de todas as
coisas, cuja existência ou inexistência depende da presença ou ausência da percepção
sensível; assim a opinião que cada homem forma na sensação é para ele a única coisa que
importa, o sentido de cada coisa depende da forma como é percebida por ele (161c).
Heráclito acreditava que os seres passavam por um fluxo ininterrupto de estados diferentes,
em cada momento da existência adquiriam uma forma determinada, de sorte que não
197
podiam permanecer para sempre no mesmo estado. Para Heráclito não somente os corpos
se transformam, como os próprios espíritos mudam continuamente, um sujeito difere de
outro sujeito precisamente naquilo que não se estabiliza em cada existência. Se tudo o que
é, é relativo à percepção individual, se tudo o que é, está em movimento, como determinar
um lugar estável para as coisas?, como determinar a natureza essencial de cada coisa?,
como eliminar o perspectivismo da definição da verdade? Para continuar o projeto de
definição do ser e atingir o conhecimento da verdade, será preciso negar que uma coisa se
torna sempre uma outra coisa e resistir ao abandono da palavra “ser” como signo da
realidade substancial. Uma vez que nem a palavra “ser”, nem a palavra “coisa” podem fixar
a natureza – as doutrinas que falam das coisas se fazendo, se destruindo, se reformando
estão de acordo quanto à impossibilidade de determinação do ser –, Platão divide o mundo
em duas realidades que rivalizam entre si, combatendo as concepções que pensam de outro
modo:
Teeteto, você tem razão de dizer que a ciência é somente sensação, essa doutrina é
partilhada por Homero, Heráclito e toda tribo que lhes segue, a saber, que tudo se move
como um rio, como também por Protágoras, para quem o homem é a medida de todas as
coisas, e ainda por você mesmo que faz da sensação uma ciência (160e).
Enquanto guardião do conhecimento verdadeiro, Platão não pode aquiescer ao que é
falso, nem deixar escapar o que é verdadeiro à vontade de saber, por isso se recusa a aceitar
as primeiras impressões, as primeiras sensações, as primeiras opiniões. O conhecimento
verdadeiro somente pode ser alcançado na reflexão racional que tem por método o modelo
dialético oferecido em cada diálogo encenado. A dialética tem por objetivo prover o
conhecimento necessário que se assenta num discurso em perfeito acordo com a natureza
das coisas. Em Platão a verdade do ser pressupõe uma natureza eterna, uniforme, coerente,
198
como a idéia de belo que não nasce nem morre, não cresce nem murcha, não se mistura
nem se divide jamais (O banquete, 211a-d).
A confiança no conhecimento não permite que Platão questione o fundamento da
verdade que preside a natureza de cada ser na definição de seu pensamento. Nietzsche não
se exclui do sistema teórico que apreende o mundo dentro de uma perspectiva conceitual,
porém não descobre somente coisas que permanecem firmes; encontra-se também com tudo
o que se modifica continuamente na realidade. Se Platão reconhece a identidade substancial
como a propriedade essencial da verdade objetiva, Nietzsche identifica a perspectiva
avaliativa como determinante fundamental da natureza de toda verdade. O conhecimento é,
portanto, uma construção humana que instaura um regime de sentido, um plano de domínio
sobre o mundo que não possui ordem preestabelecida. A duração desse domínio depende do
conjunto de forças ativas e reativas que disputam o controle na percepção dos fenômenos,
na constituição das representações, na formação das avaliavações. Definir seres é encontrar
verdades, verdades são interpretações que fazem do mundo um lugar habitável, imagem e
semelhança da vivência moral que se torna condição para a vida. Somente o homem possui
horizontes e perspectivas transitórias, ilimitadas, pois existem tantos mundos a descobrir
quantos homens a se formar, desde que o homem possa nomear o que ainda não conhece. É
o que revela Nietzsche quando discute a vis creativa em A gaia ciência:
O que quer que tenha valor no mundo de hoje não o tem em si, conforme sua natureza – a
natureza é sempre isenta de valor: – foi-lhe dado, oferecido um valor, e fomos nós esses
doadores e ofertadores! O mundo que tem algum interesse para o ser humano, fomos nós
que o criamos! – Mas justamente este saber nos falta, e se num instante o colhemos, no
instante seguinte voltamos a esquecê-lo: desconhecemos nossa melhor capacidade e nos
subestimamos um pouco, nós, os contemplativos – não somos tão orgulhosos nem tão
felizes quanto poderíamos ser (2001, p. 204, § 301).
199
O homem possui uma vis contemplativa e uma vis creativa. Quando contempla uma
obra na paisagem, recorta uma natureza com sentido, organização e finalidade determinada.
O homem é antes de mais nada uma vontade de poder; quanto mais atuante é a vontade de
domínio, mais original torna-se a vontade de criação que nega continuamente a fixação da
natureza de cada coisa, que tem necessidade de renovar cada estado constituído, que não
permanece sempre do mesmo modo na realidade; basta criar novos nomes, avaliações,
probabilidades para que o mundo necessite de outra organização. O postulado do devir,
definido por Heráclito como a unidade essencial do mundo, não reconhece senão a
realidade cambiante descrita por Platão na seguinte passagem do Banquete:
Mas, além do corpo, também a alma é afectada: estados de espírito, hábitos, opiniões,
desejos, alegrias, tristezas, receios – nenhum destes sentimentos permanece em cada um de
nós identicamente; nascem uns, desaparecem outros... E o mais extraordinário ainda é o que
se passa com os nossos conhecimentos: assim nascem, assim se vão, de tal sorte que nunca
somos os mesmos no que respeita aos nossos conhecimentos, pois cada um deles,
considerado isoladamente, está sujeito a idêntica mudança; efectivamente, o que chamamos
estudar pressupõe um conhecimento que pode escapar-nos; e esquecer, que significa senão a
fuga de um conhecimento? Por outro lado, o estudo, repondo uma nova recordação no lugar
da que se vai, salva o conhecimento, que assim parece manter-se sem alteração (208a-b). 15
Platão suspeita do estatuto do conhecimento, porém não duvida de que a pesquisa
dialética supere a inconstância do conhecimento – a opinião – e atinja o que permanece
sempre do mesmo modo – a verdade – através da reflexão racional. Nietzsche desconfia de
tudo o que em nós quer tornar-se uma substância sólida, por isso contraria a idéia de que
seja possível o conhecimento da verdade essencial; nega inclusive que exista uma espécie
de verdade em si mesma que se mantenha em seu estado puro, tornando assim impossível
toda forma de conhecimento de fato. A filosofia, a ciência, a literatura não são formas de
15
O ser não é a verdade, mas o devir que muda de estado e transforma o determinado continuamente: “Este
mundo, o mesmo de todos os seres, nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre
vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas” (Heráclito, 2000, p. 90).
200
conhecimento no sentido estrito da expressão, pois a natureza do conhecimento pressupõe a
existência de um mundo determinado, organizado em torno de um sentido absoluto que não
conhece a mudança de estado. Seja qual for a inteligibilidade que se atribua ao mundo –
matérias, efeitos, sentidos –, seja qual for o grau de correspondência entre o conceito
abstrato e a realidade objetiva, a realidade não passa de um domínio da vontade de poder
que movimenta a vontade de criação; por maior que seja a vontade de verdade que
movimenta a vontade de saber, o conhecimento é um erro, no sentido de que não existe
uma verdade em si mesma preexistente ao ato de pensamento que pudesse ser atingida por
um método de reflexão impassível de distorções:
Em algum canto perdido do universo que se expande no brilho de incontáveis sistemas
solares surgiu, certa vez, um astro em que animais espertos inventaram o conhecimento.
Esse foi o minuto mais arrogante e mais mentiroso da história do mundo, mas não passou de
um minuto. Após uns poucos suspiros da natureza, o astro congelou e os animais espertos
tiveram de morrer. Foi bem a tempo: pois, se eles vangloriavam-se por terem conhecido
muito, concluiriam por fim, para sua grande decepção, que todos os seus conhecimentos
eram falsos; morreram e renegaram, ao morrer, a verdade. Esse foi o modo de ser de tais
animais desesperados que tinham inventado o conhecimento (2005, p. 28-29).
Não temos nenhum órgão para o conhecer, para a verdade: nós sabemos (ou cremos, ou
imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse da grege humana, da
espécie: e mesmo o que aqui se chama utilidade é, afinal, apenas uma crença, uma
imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia pereceremos (2001,
p. 250, § 354).
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e
retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas,
canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são,
metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e
agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas (1983, p. 48, § 1).
A crítica da metafísica e a valorização da vontade no pensamento de Nietzsche têm
por objetivo redimensionar a perspectiva de avaliação do mundo onde tudo flui e nada
persiste; somente liberando-se da necessidade de acolher irrefletidamente os valores da
metafísica que fundamentam um regime de oposições essenciais francamente desfavorável
201
à realidade que não permanece sempre a mesma, o mundo aparente, único mundo existente,
pode receber uma medida de valor mais elevada no campo da experiência humana. Como
falta um critério objetivo do verdadeiro que possa servir de fundamento definitivo para a
teoria do conhecimento, todo pensamento que afirma a anterioridade de alguma essência
numa realidade objetiva pode ser acusado de engendrar uma inconsistente mistificação da
verdade; desde a especulação iluminista “A razão como órgão destinado a perceber a
verdadeira natureza da realidade e determinar os princípios que guiam a nossa vida
começou a ser considerada obsoleta” (Horkheimer, 2003, p. 26).
A crítica da teoria do conhecimento em Nietzsche torna obsoleta a perspectiva
tradicional que opõe verdade e mentira como antinomias que se esclarecem reciprocamente,
basta convocar uma forma para que revele a figuração de sentido mais apropriada à sua
natureza. Se a verdade essencial é uma perspectiva hegemônica que domina durante o
período em que se mostra necessária por um conjunto de razões cuidadosamente eleitas,
podendo em outro momento ser destituída do posto de comando quando não se precisar
mais de suas razões imediatas, apaga-se a diferença essencial entre verdade e mentira que
anteriormente criava a necessidade de separação. Como o princípio fundamental que
preside a formação da verdade nasce de uma necessidade previamente identificada, a
unidade essencial de sua constituição natural não se reduz a uma forma uniforme que
subsiste em si mesma: que é a verdade senão a maneira como o homem acolhe cada coisa
que toma forma ante seu campo de visão? Conduzida pela avaliação de outra medida,
forçada pelo sentido de outra interpretação, a construção da verdade obriga o homem a
contrapor novos modelos aos velhos ideais; a verdade não se enraíza no domínio do que
tinha sido, não se limita a conservar o passado histórico numa natureza, a necessidade de
ser diferente do que se é promove sempre sua superação. Quem cria verdades rege o mundo
202
à sua maneira, quem é capaz de negar e destruir pode afirmar e criar em toda existência de
caráter perspectivístico que encerra infinitas interpretações. Quando Nietzsche superou a
oposição metafísica entre verdade e mentira, aboliu também a oposição absoluta entre
ficção e verdade, reconhecendo o potencial poético da obra de ficção que inaugura um
distanciamento estético da natureza conhecida como resposta à vontade de criação cujo
desejo de mudança atribui sentido a um mundo que em si mesmo não possui nenhuma
realidade objetiva. O distanciamento estético se distingue por sua natureza diferencial que
acolhe o devir como uma forma de exceção. A literatura pode mediar o contato com o que
não se conhece, nem pode ser conhecido, contanto que perscrute o evento obscuro que
envolve a experiência humana, contanto que acolha o mundo como um evento que exige o
sentido da nuance, contanto que compreenda a necessidade de apreender o que é estranho e
questionável na existência, que é antes de mais nada uma sucessão de interpretações que
determinam o indeterminado a cada vez. Na medida em que a literatura participa da
vontade de criação que deseja o novo, o raro, o diferente, a palavra poética permanece
como uma forma da vontade de poder que nega o desejo de fixar a realidade na forma do
ser, contrariando assim a opinião acostumada a aferir velhos valores e rejeitar
interpretações que nascem de outra medida, que dizem de outra maneira.
A narrativa de Bernardo Carvalho seleciona e combina pontos de vista diferentes
para instalar no espaço narrativo certos acontecimentos de natureza emblemática. A
realidade imediata é confrontada pela insurgência de perspectivas divergentes, de forma
que é impossível alcançar a definição definitiva da unidade essencial de cada natureza
delineada. Mesmo o que se apresenta como um testemunho da verdade – uma carta, uma
fotografia, um diário –, é tomado por pontos de indeterminação que incitam muitas
avaliações. Definir um sentido determinado, fixar uma unidade essencial, adquire a forma
203
de um quebra-cabeça de difícil solução, sobretudo porque a realidade das coisas muda de
sentido a cada investida em sua direção. Nove noites narra a história de um escritor
interessado em elucidar o enigma que envolve o suicídio do antropólogo americano Buell
Quain no interior do Brasil central pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Embora o
romancista consiga reunir vários documentos deixados por Buell Quain antes de morrer,
cada nova fonte encontrada numa busca sem precedentes contradiz, rediz, desdiz o que
parecia constituir uma forma determinada do passado, o que parecia apreender uma
memória bem preservada. Por que o antropólogo se matou? Bastaria reconhecer os motivos
que o levaram a cometer o suicídio para que o enigma fosse solucionado, no entanto as
motivações se diversificam, os documentos se contradizem, as interpretações se
multiplicam incessantemente. Em meio à incerteza mais absoluta, ninguém é capaz de
encontrar um sentido em que possa confiar: “A verdade está perdida entre todas as
contradições e os disparates” (p. 7).
A impossibilidade de assinalar uma denominação estável para as coisas no interior
de uma ordem homogênea conduz a percepção da realidade a definições enganosas,
atribuições equivocadas, relações ambíguas. A busca por um sentido determinado, em vez
de se encontrar com a meta esperada, desencadeia a dissolução da natureza da verdade que
anda numa mudança contínua, tal procura se define antes de tudo como um eterno retorno
por caminhos circulares que conduzem sempre ao mesmo ponto de indeterminação.
Compreende-se por que a verdade pode esquivar-se da definição, do mesmo modo que a
ficção está pronta a desviar-se da malha conceitual, uma vez que a certeza imediata,
princípio unificador da experiência humana, é substituída pela dúvida absoluta, que
somente existe enquanto prova do sentido totalizante. Não resta espaço nessa narrativa para
a fixação de papéis definitivos, para a defesa da propriedade substancial, para a depuração
204
da natureza essencial; o inventário dos fatos e do espólio depende antes de tudo da
confiança de quem os relaciona e da interpretação que lhes é atribuída. Aqui a verdade não
é uma realidade em si mesma capaz de enumerar cada elemento que compõe o ser em sua
totalidade, mas um estado transitório de sentido que pode mudar de direção e
inteligibilidade desde que se altere o princípio da interpretação. Desde que a verdade
aparente destituiu a verdade essencial de seu domínio, o homem ficou entregue a uma
busca sem fim pelo sentido imutável que cada vez mais se afastava do campo da
experiência sensível, por isso mesmo o último depositário da verdade na narrativa de
Bernardo Carvalho está determinado pelo conhecimento imaginário – o que não se conhece
na realidade é imaginado na ficção, como se um caminho ainda inexplorado se abrisse à sua
frente: “O que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que imaginei. Assim
também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever” (p. 134).
Nesse caso se deve dizer de modo mais preciso que a imaginação é uma potência
poética cuja força criadora libera a identidade apropriativa da cadeia lógica preestabelecida.
Nove noites narra a história de uma tribo de índios no Pacífico Sul que define os laços de
parentesco entre seus membros a partir da escolha do papel que desejam representar na
sociedade. Apesar da limitação do repertório de propriedades e da permanência em cada
propriedade selecionada, é inegável que a possibilidade de decidir individualmente o que se
quer ser em relação ao outro libera o imaginário do controle de leis rígidas. Somente assim
pode-se caminhar por um sentido que, contrariando a função lógica da identidade
apropriada, faça da experiência um espaço de descoberta, um jogo definido por regras que
precisam ser inventadas, até porque já não resta nenhuma certeza da verdade ante a vontade
de saber quando se mudam as categorias mentais que assimilam de outra maneira.
Paradoxalmente o próprio narrador, que parece estar tão empenhado em determinar a
205
verdade que cerca os acontecimentos, se deixa levar pela necessidade de impedir que algum
sentido seja determinado definitivamente no romance: “O fato de que nenhum de nós
provavelmente jamais conhecerá os fatos torna ainda mais difícil nos desembaraçarmos
deles” (p. 88), escreve a irmã de Buell Quain numa carta endereçada à sua orientadora,
deixando escapar a realidade ambígua que envolve o suicídio do antropólogo. Desde o
início o espólio que constitui a fonte de investigação não permite que se chegue a uma
conclusão final sobre a motivação do suicídio: os escritos, as histórias constituem fatos ou
imaginações, verdades ou falsificações, razões ou desrazões? O sentido dos acontecimentos
está contaminado pela ambigüidade que contradiz toda função lógica, a interpretação dos
afetos está para sempre condenada ao engano ante o desconhecido, e a única fonte de
esclarecimento da verdade que poderia mudar o sentido de toda a história, uma oitava carta
talvez escrita por Buell Quain, é destruída por Manoel Perna, temeroso de que o conteúdo
da carta incriminasse o antropólogo de alguma forma. Esgotados todos os meios de
encontrar a oitava carta que daria um sentido a toda a história, o narrador assume o caráter
de ficcionista e imagina a carta-testamento deixada por Manoel Perna como registrodocumento das nove noites em que esteve na companhia de Buell Quain, o que, se não
esclarece os fatos objetivamente como gostaria a vontade de verdade, levanta várias
suposições não comprovadas, com o tempo as imaginações se tornam lembranças na
narrativa de Bernardo Carvalho.
Não se pode desenterrar a verdade, se de fato se encontra isolada numa caverna,
porque permanece num domínio de acesso impossível; se, ao contrário, nunca houve
nenhuma verdade que tivesse sempre a mesma forma, o esvaziamento da realidade reforça
a sensação de perda de sentido e a necessidade urgente de reformar o fundamento de
apropriação. Mongólia não apresenta uma realidade existencial diferente. Nesse romance,
206
como em outras narrativas de Bernardo Carvalho, a busca da verdade deve contar sempre
com o desvio do sentido procurado que não se entrega à comprovação objetiva. O romance
narra a história de um diplomata brasileiro que precisou deslocar-se para a Mongólia à
procura de um fotógrafo também brasileiro desaparecido no deserto daquele país. O jovem
fotógrafo se perdera no deserto mongol quando estava procurando uma paisagem
desconhecida onde uma divindade tantra supostamente fizera uma revelação a um lama
budista em fuga da perseguição comunista à época da ocupação soviética. O desaparecido
também investigava a existência de um manuscrito sagrado de conteúdo desconhecido que
possivelmente conteria o sentido da revelação da divindade tantra. O signo da procura se
multiplica em diversos planos da narrativa: o fotógrafo procura a paisagem perdida no
deserto mongol, o diplomata procura o fotógrafo desaparecido nas rotas do deserto, o
narrador procura o fotógrafo e o diplomata nos diários deixados na embaixada em Pequim.
Não faltam indícios de que a investigação deve percorrer caminhos sinuosos, uma vez que
o deserto mongol é a representação geográfica de um labirinto sem paredes onde tudo se
mostra tão ambíguo e impalpável que é bem provável que o objeto buscado não tenha
jamais existido realmente. Sendo necessariamente o espaço onde se perde cada vez mais o
sentido das coisas, onde o risco de se extraviar ante o desconhecido sempre acompanha a
escolha de um novo caminho, o labirinto oferece pistas enganosas que levam os
personagens a rodarem em falso, como os sinais encontrados junto aos nômades do deserto,
referências que nunca estão no mesmo lugar, deslocam-se de acordo com as estações numa
paisagem definida por hesitações. Quem segue as rotas do deserto deve tomar cuidado com
a grandiosidade da paisagem que é escorregadia e nebulosa como as palavras:
As estradas da Mongólia na realidade são pistas que o motorista tem que decifrar entre
dezenas de outras, são marcas de pneus em campos de pedras, desertos e estepes. Marcas
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deixadas por pneus que, de tanto incidirem sobre o mesmo caminho, acabam criando uma
pista. Muitas vezes, no deserto, por exemplo, não há nenhum ponto de referência além das
trilhas deixadas pelos pneus de outros carros. Os motoristas insistem em segui-las, como
quem toma o caminho seguro, tradicional. O bom motorista é aquele que sabe achar a sua
pista no deserto. A boa pista (p. 137-138).
Com a verdade perdida entre lendas e suposições, a prova é substituída pelo indício,
a certeza pela especulação, a memória pela imaginação; aliás, falsa memória e criação
poética estão profundamente relacionadas, uma vez que lembranças imaginárias substituem
lacunas da experiência por associações diversas. Lembrar é, portanto, imaginar. Bernardo
Carvalho torna o romance uma combinação de memória e imaginação, o monumento de
uma crise, a figuração de um novo estado. Nesse caso a literatura é caracterizada como um
fenômeno poético, uma metamorfose da experiência, uma potência de transformação da
matéria que se encontra por toda parte, princípio estético que constitui o valor fundamental
da literatura moderna, medido através do potencial de inovação que é experimentado em
sua constituição, inovação que determina para Paul Valéry em Variedades uma distância
estética entre os ídolos de uma época e a vontade de existir como uma exceção: “Nos
campos da criação, que são também os do orgulho, a necessidade de se distinguir é
inseparável da própria existência” (1999, p. 22), “Nunca houve arte mais sutil do que essa
arte que supõe que fugimos da outra, e não que a precedemos” (1999, p. 60), “Mas o que
importa uma época quando, afinal, trata-se apenas de ultrapassá-la e que o ato de pegar a
pena ou o lápis só tem um sentido e um valor profundo se estiver dirigido contra o que
existe e dedicado ao século indefinidamente futuro” (1999, p. 88). A literatura torna-se
nesse caso um artifício do provável cuja força de revestir numerosos aspectos na realidade
se recusa a satisfazer uma necessidade preexistente num sistema de definições que coloca o
sentido à disposição do conhecimento para validar uma necessidade desconhecida que
208
requer o redimensionamento do conhecimento estabelecido; por isso a literatura não tem,
não pode ter, um lugar e uma função plenamente determinada na ordem utilitária da vida.
Na medida em que a literatura assinala o horizonte do fenômeno poético, não
esquece nada do que existe, nem devolve ao nada o que ainda permanece sem
denominação, torna-se assim mais uma procura indeterminada que uma entrega absoluta.
Não faltam nessa investida restrições contra as obras do passado, ataques contra as idéias
da tradição, suspeitas em relação aos sistemas de sentido considerados mais verdadeiros. Se
a realidade existencial escapa à definição definitiva, o escritor se volta para a poesia com o
desejo de que a imaginação transforme o mundo desconhecido numa experiência
determinada. Se a verdade não pode persistir em seu ser, desde que o limite da substância
lhe é negado, a ficção assinala que ser uma coisa não impede necessariamente de ser uma
outra. A narrativa de Bernardo Carvalho, desde a manifestação de seu primeiro esboço,
figura uma realidade alheia à determinação. Como um sentimento de irrealidade penetra a
história, o homem, a palavra, é improvável que o mundo disponha de um sentido essencial;
por isso o romance está sempre na iminência de uma revelação que não se produz, o que
tende a constituir o fato estético para Borges em Outras inquisições (2000, p. 11). Houve
uma época em que o pensamento não questionava os fundamentos mais essenciais da
natureza das coisas; hoje não somente questionamos os valores que constituem o
conhecimento, como refletimos que valores devem permanecer no horizonte da formação
humana, já que o declínio da razão objetiva colocou por terra toda verdade dogmática.
209
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